A geração atual de idosos cresceu em um contexto com acesso significativamente menor a fontes de informação do que as disponíveis hoje e, portanto, é mais suscetível ao radicalismo
Por Mariana Bueno
O envelhecimento não é apenas um processo biológico. É, também, um fato social e cultural. O passar dos anos gera mudanças físicas, psicológicas, e modifica, também, a relação com o tempo, com o mundo e com a própria história. Alguns idosos são mais receptivos às novas experiências, enquanto outros mantêm certa rigidez em relação a possíveis mudanças. O modo de pensar e de agir pode carregar, também, influências das vivências de cada pessoa e de como cada um sempre foi antes da velhice chegar.
No contexto atual, há ainda a influência do acesso à internet e, principalmente, às redes sociais, que, muitas vezes, suprem a ausência de relações presenciais e de amizade, num contexto de mais ócio e solidão. E, a partir disso tudo, um fenômeno que vem sendo observado é a tendência a uma visão de mundo mais radicalizada e com viés mais reacionário conforme envelhecemos.
O psicólogo clínico Elídio Almeida explica que há um segmento da psicologia, a psicologia social, que estuda um padrão comportamental conhecido como “efeito manada”, também chamado de comportamento de rebanho. Esse fenômeno ocorre quando indivíduos seguem as ações ou decisões de um grupo sem uma análise crítica ou independente da situação. “Esse comportamento é bastante observado entre idosos, especialmente em razão do recente acesso desse grupo às redes sociais. Com isso, frequentemente eles adotam o comportamento de imitar um grupo, conformando-se às ações ou opiniões da maioria, mesmo que discordem individualmente. Essa imitação pode ser motivada pelo desejo de pertencer, medo de exclusão ou pela suposição de que o grupo possui conhecimento superior”, diz.
O comportamento de seguir o grupo pode representar uma escolha que garante segurança. Mas, quando as pessoas não avaliam adequadamente as informações disponíveis, essa tendência pode resultar em decisões irracionais ou prejudiciais, seja em situações cotidianas ou em momentos cruciais.
De acordo com o doutor em Filosofia pela Unicamp João Antônio de Moraes, é importante entender também que a nossa “visão de mundo” é constituída pelas crenças que cada um de nós tem sobre o mundo. “Essas crenças se constituem e se ‘cristalizam’ à medida em que a pessoa desenvolve sua identidade pessoal, com escolhas, valores, hábitos, interesses, entre outros. E as diferentes expressões da identidade, isto é, a subjetividade, irá carregar o que tiver presente nas crenças. São as crenças que guiarão as ideologias político-partidárias, religião, direitos e deveres individuais, etc”, cita.
Em relação às ideias e posicionamentos mais radicais, ele diz que um aspecto que contribui para pensar o conservadorismo e a dificuldade de lidar com as mudanças no mundo são justamente as expressões da subjetividade, que possuem forte carga emocional imbuída e, portanto, são as mais difíceis de serem modificadas ou colocadas à prova. “O aspecto emocional se sobrepõe ao racional quando se trata de alguns tipos de mudanças, criando o ‘falso ideal’ de que ‘antigamente era melhor’. Quando consideramos o contexto informacional, as noções de ‘falso ideal’ e o aspecto conservador (e de polarização) se tornam ainda mais complexos”, explica.
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Novas tecnologias levam à radicalização?
Na medida em que as redes sociais se tornaram as próprias relações sociais, surgiram também uma série de problemas em decorrência do uso excessivo e inadequado do celular, podendo levar a um isolamento. Por outro lado, as redes acabaram se tornando uma distração e proporcionando novas conexões. “O convívio dos idosos com o celular costuma ser mais benéfico do que prejudicial. Isto, porque, entre os idosos, o uso do celular cumpre também a função de estimular o cérebro, gerando diversos efeitos positivos, inclusive para a atenção e a memória, e também no combate à depressão e outros quadros patológicos inerentes a idade, como demência, Alzheimer, ansiedade, solidão e declínio cognitivo”, afirma o psicólogo.
Ele acredita que os recursos disponíveis na internet permitem, também, que os idosos participem mais ativamente da sociedade. “Um exemplo disso pode ser observado na participação deles nos recentes pleitos eleitorais e nas atuais questões políticas do país. Além disso, é por meio do celular que muitos idosos interagem de diversas formas com o mundo, com a família, o que contribui para que se mantenham ativos e se adaptem à realidade em que vivem”, diz. Mas, apesar do saldo positivo, pessoas de mais idade constituem o grupo social com menos habilidades tecnológicas. Logo, estão constantemente expostos a golpes financeiros e mais susceptíveis a se tornarem vítimas de notícias falsas. Essa vulnerabilidade decorre, em grande parte, da falta de familiaridade com as práticas de segurança digital e a menor capacidade de discernir informações confiáveis na internet.
De acordo com um estudo divulgado em 2018 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), aproximadamente 26% dos idosos já aderiram ao uso da internet. Os aplicativos mais populares entre esse grupo são os de transações bancárias (11,8%), serviços de transporte individual (8,4%) e viagens (6,3%). A pesquisa também revelou que as principais razões para o uso da internet pelos idosos são o contato com familiares (62,9%) e amigos (59,8%), a busca por notícias sobre economia, política, esportes e moda (47,8%), e informações sobre produtos e serviços (43,0%). Quanto às redes sociais mais utilizadas, destacam-se o Facebook (77,3%), WhatsApp (73,5%) e YouTube (39,8%). São números bastante expressivos que comprovam que a internet vem desempenhando muito mais que uma função apenas tecnológica ou prática.
O livro “A Máquina do Caos”, de Max Fischer, questiona se as redes sociais são ferramentas que apenas refletem a natureza das pessoas ou se estimulam comportamentos extremistas. E pontua que a tecnologia das redes exerce uma força de atração tão poderosa na nossa identidade, que transforma o jeito como pensamos, como nos comportamos e como nos relacionamos uns com os outros. Esse efeito, multiplicado por bilhões de usuários, tem sido a transformação da própria sociedade.
Ainda no livro, há a citação de uma fala do psicólogo Mark Leary, que diz que boa parte do poder das mídias sociais vem do fato de que elas exploram uma coisa chamada “sociômetro”, que faz com que as pessoas percebem que são valorizadas nas relações e socialmente aceitas pelos outros, o que impacta também na autoestima.
Redes sociais e fake news
O filósofo concorda que, considerando o contexto digital, o elemento fundamental para a verificação da radicalização entre os mais velhos é o pouco conhecimento em relação à utilização das tecnologias digitais e de seus possíveis impactos. Ele comenta que, entre os idosos, há pouca habilidade de se ajustar ao rápido avanço tecnológico, à gama de possibilidades de ação e, especialmente, de manipulação que são geradas.
Embora o número de pessoas que possuem o conhecimento acerca do funcionamento das redes sociais esteja aumentando, ainda são poucos os que entendem sobre a atuação de seus algoritmos e a forma como ocorre a seleção da informação que será apresentada. “As pessoas ainda possuem o falso entendimento de que a internet é um espaço livre, público e democrático, reduzindo à internet a Google e Facebook, por exemplo. Vale destacar que estas são duas empresas privadas, com donos, que possuem, como qualquer empresa privada, o lucro como um de seus principais objetivos. É com este objetivo que elas atuam para que o usuário fique cada vez mais presente em suas redes sociais e aplicativos e, para isso, são oferecidas informações que corroboram com as crenças destes usuários – especialmente àquelas com forte carga emocional, pois são aceitas com maior facilidade”, explica.
É aí que as fake news atuam com maior eficiência. As redes sociais sistematicamente excluem informações inconsistentes com aquelas previamente aceitas pelos seus membros que, na sua maioria, não têm consciência disso, de tal forma a exagerar a confiança em relação às visões de mundo. Assim, tendem a mostrar pontos de vista com os quais as pessoas já concordam. E quando alguém conversa apenas com quem pensa de forma semelhante, a visão de mundo é confirmada repetidamente até que se torna uma verdade inquestionável. “A falsa impressão de acesso ilimitado à informação, propiciado pelo ambiente virtual, alimenta os efeitos danosos dessas estruturas digitais de comunicação e conhecimento do mundo. E o enfoque nessas tecnologias se dá pelo fato de estarem se tornando, cada dia mais, o meio pelo qual as pessoas constroem suas ‘visões de mundo’”.
Um exemplo clássico e bem anterior ao advento das redes sociais é de um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Stanford no final da década de 1970, com dois grupos de pessoas: um contra a pena de morte e outro a favor. A cada grupo foram passados estudos falsos sobre a eficácia ou não da pena de morte como medida para reduzir a criminalidade. E o resultado foi que cada grupo concordou com o estudo que era mais condizente com a opinião inicial, mostrando que as pessoas conseguem encontrar fundamento para chancelar suas crenças mesmo que com poucas evidências.
Dados mais recentes, de uma pesquisa da consultoria Advice e da BonusQuest, mostraram que, no Brasil, cerca de 42% dos usuários de redes sociais afirmam já terem compartilhado notícias falsas. Esse conteúdo falso, no geral, costuma ser exatamente o mais radical e extremista.
Os frutos da pós-verdade
A doutora em Ciências Sociais pela PUC-Minas Bruna Camilo, superintendente do consórcio regional Mulheres da Gerais, diz que é possível apontar que as pessoas mais velhas são mais vulneráveis a acreditar em notícias falsas, a se envolver em sites de pouca credibilidade. Ela aponta também que estamos vivendo em um momento da pós-verdade, que é quando a notícia, com a rapidez da internet, chega muito antes do que se verifica se aquilo procede ou não. “A pós-verdade é você acreditar no que está lendo, para além de ser verdade realmente”, explica.
Outro ponto levantado por ela é que hoje, na maioria dos planos de telefonia, mesmo quando acabam os créditos, o WhatsApp e as redes sociais continuam funcionando. “Isso é muito complicado, porque não coloca nenhum obstáculo para qualquer notícia que chega. E é algo que atinge principalmente os mais velhos por não terem sido socializados com a tecnologia desde o início. São um grande alvo por não terem essa habilidade de verificarem”.
Para falar de radicalismo, há que se levar em consideração também que a sociedade brasileira é extremamente conservadora. E os avanços, ainda que poucos, geram reações. “Antigamente as ditas ‘minorias’ viviam escondidas, acuadas, por não terem seus direitos reconhecidos. Muitas morriam de forma silenciosa. Hoje, por causa do advento da internet, há uma maior circulação de informações que fazem as pessoas se sentirem potentes e empoderadas, para conseguir reivindicar os seus direitos. Então essas minorias agora têm voz, têm representantes políticos e de lideranças de movimentos sociais que legitimam a reivindicação por direitos. Com isso, as pessoas que são mais conservadoras, que levam o moralismo ao extremo, se sentem incomodadas com o avanço dos direitos das mulheres, das pessoas LGBT, de negros e negras”, diz a cientista social.
Ela acrescenta ainda que, nessas situações, as ideologias radicais mostram que há grupos que acolhem, acolhem o ressentimento e que também são contra esses avanços. E esse ressentimento as envolve umas com as outras. “A internet é muito propensa a isso. Quando você tem uma velocidade rápida de informação, você consegue disseminar diversas ideologias. Ao passo em que, por exemplo, o movimento feminista avançou, os movimentos antifeministas, o conservadorismo e os grupos misóginos também avançaram. Fica tudo muito aflorado, porque as coisas chegam no nosso telefone, chegam literalmente na nossa mão. Então, essa radicalização tende a aumentar, sim. E a gente tem que tomar muito cuidado”, observa.
Para tentar reverter ou, pelo menos, minimizar danos, Bruna defende a importância da criação de políticas públicas voltadas para o combate à radicalização. “O ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, instaurou um GT (grupo de trabalho) de combate ao extremismo e lançou um relatório muito bem escrito, muito didático e muito propositivo, apresentando as demandas ao governo para que ideias sejam desenvolvidas. É preciso pensar no sofrimento mental, porque há pessoas que cometem crimes ligados à radicalização. Tem que pensar também na segurança pública. Punir criminosos, mas sabendo que a punição de cárcere não é suficiente. É preciso entender a questão psicológica, fazer grupos de reflexão. Isso tudo envolve política pública”.
E onde fica a experiência de vida?
Todo esse cenário pode parecer um pouco confuso e até mesmo contraditório, já que é comum pensar que o envelhecimento traz, também, mais sabedoria. E que a experiência de vida poderia ajudar a ter uma noção do que pode ser ou não real. No entanto, de acordo com o filósofo, no contexto atual de uma sociedade estruturada a partir de tecnologias digitais, a experiência da vida talvez seja um elemento que corrobora para reforçar as “visões de mundo” já moldadas. “As plataformas são capazes de selecionar informações que reforçam as crenças individuais de cada usuário, com informações positivas sobre o que gostam, e informações negativas sobre o que não gostam. Não é à toa que vivenciamos situações em que a emoção e as crenças pessoais são mais eficientes em tomadas de decisão do que os fatos”, afirma.
Outro fator que, segundo a cientista social, leva a uma maior incidência dessa radicalização é a geopolítica. “A gente percebeu maior incidência de grupos misóginos e masculinistas num momento no Brasil em que existia um discurso maior que vinha diretamente do presidente à época. Na minha pesquisa eu mostro que os apoiadores de Bolsonaro às vezes se revoltavam com ele, quando não revogava nenhum tipo de lei que pudesse dar maior equidade de gênero, quando colocava mulheres no governo. Ou seja, eles também eram contra mulheres de direita. Então a questão geopolítica de extrema direita, com esses homens que estão no poder executivo, que reproduzem algum tipo de discurso misógino, dá uma legitimidade para esses grupos. Não que não existisse antes, não que não exista agora, mas houve uma força, uma coragem para esses grupos se manifestarem”, comenta.
O filósofo aponta ainda o conceito de divisão digital, que consiste nas lacunas existentes entre grupos em relação às tecnologias digitais e as possibilidades de acesso à informação, com diferenças nos dispositivos usados, nos níveis de alfabetização digital e até mesmo na desigualdade social. “Questões de classe social e geopolíticas são determinantes na forma como os indivíduos podem desenvolver habilidades para ter um acesso significativo às tecnologias. Considerando a noção de ‘cidadania digital’ como a ‘habilidade de participar em sociedade online’, estão ‘dentro’ os que utilizam a informação obtida para promover conhecimento cultural e/ou bem-estar econômico e estão ‘fora’ os que utilizam apenas para entretenimento superficial. Já que a parte mais pobre da população mundial compreende a maioria dos que estão ‘fora’, o círculo vicioso se mantém em relação às desigualdades sociais em todo o mundo”.
Para o psicólogo, há também o fato de que os idosos enfrentam desafios decorrentes do processo de envelhecimento, como a diminuição da capacidade cognitiva, o que os impede de adquirir ou acompanhar o mesmo conhecimento que outras gerações possuem para lidar com os malefícios da tecnologia. Muitos também carregam consigo resquícios de uma sociedade arcaica, na qual conceitos ultrapassados sobre machismo, gênero, raça, sexualidade e valores familiares já não têm o mesmo sentido na sociedade atual.
Além disso, a geração atual de idosos cresceu em um contexto com acesso significativamente menor a fontes de informação do que as disponíveis hoje. De forma abrupta, agora têm em seus aparelhos celulares um dilúvio de informações e conteúdos, apresentados em várias linguagens e filtrados estrategicamente por criadores de conteúdo e algoritmos, com o objetivo de atrair cada vez mais atenção, moldar opiniões e disseminar ideais. “O problema é que essas ações frequentemente envolvem notícias falsas, pensamentos totalitários e preconceitos, direcionados principalmente aos grupos mais vulneráveis, como os idosos. Infelizmente, eles são fortemente afetados pela falta de familiaridade ou pouca experiência com práticas tecnológicas. É extremamente difícil para alguém que cresceu em um ambiente com recursos tecnológicos limitados e produtos audiovisuais de qualidade técnica inferior, reconhecer uma imagem manipulada, uma notícia falsa ou qualquer outro conteúdo atualmente produzido com ferramentas de edição de alta resolução, que estão disponíveis para qualquer pessoa”, pontua.
Por tudo isso, a tecnologia tem conseguido aproximar os idosos, fazendo com que encontrem ressonância entre seus pares e sejam influenciadas por aqueles que têm interesse em manter essa lógica ultrapassada. Isso é altamente irresponsável com os mais velhos e igualmente danoso ao corpo social, de modo geral. Há, inclusive, muitas relações familiares que foram afetadas pelas divergências de opiniões e posicionamentos, principalmente pelo fato de que as pessoas mais velhas passaram por mudanças na forma como pensam.
O radicalismo e a dificuldade de convivências familiares
A técnica em certificações Giovana Franzin, de São Paulo, viveu essa situação em família. Ela conta que o pai, Flávio, de 63 anos, sempre foi um homem de mente aberta e com ideias inovadoras, que sempre se mostrou curioso a aprender sobre diferentes linhas de pensamento e era alinhado com o lado científico das coisas. “Ele acreditava em direitos iguais, puxou greve quando trabalhava em banco e tenho certeza que votou no Lula até que ele ganhasse. A mudança foi, para mim, absurdamente brusca nas eleições do ano de 2018”, lembra.
Na época, Giovana viu o pai e a mãe aprenderem a usar aplicativos como o Whatsapp e Instagram e acredita que isso facilitou ainda mais a fazer com que eles acreditassem nas coisas que recebiam e liam. E o algoritmo fez o resto. “O instagram da minha mãe só tem perfis de extremistas e eles postam as mesmas coisas o tempo todo, uma verdadeira lavagem cerebral”, lamenta.
Com o pai foi a mesma coisa. “De repente, o cara em quem sempre me espelhei para ter pensamento crítico, acreditava nas coisas postadas pelo enorme grupo de fake news que nasceu com o aparecimento do Bolsonaro. Eu tentei conversar, argumentar, xinguei, perdi a linha… mas não tinha nada que eu falasse que fizesse ele enxergar as coisas com o mínimo de dúvida. Ele só acreditava em tudo”.
O convívio se manteve, mas a relação como era antes morreu. “Houve discussões em quase todos os encontros, ficou totalmente insalubre para mim, que tenho uma dificuldade imensa em ver como o meu pai, que sempre foi meu exemplo de inteligência, caindo nessas notícias mentirosas e só seguindo meios de notícias altamente tendenciosos. O cara que sempre curtiu ciência e tecnologia nem vacina quer mais tomar. É triste”, lamenta.
História semelhante vive uma advogada de Porto Alegre que preferiu não se identificar. Ela relata que a mãe, hoje com mais de 80 anos, sempre foi uma mulher à frente do seu tempo. Professora de História da Arte e Música, pós-graduada, primeira mulher desquitada da família e entre amigos no início da década de 1980, assumiu as filhas como mãe solo, passou necessidades, jamais aceitou ajuda de familiares ou manteve relacionamentos que lhe trouxessem vantagens. Ainda hoje é muito independente, não possui qualquer doença, administra sua vida e negócios. Segundo a filha, o adoecimento é apenas emocional e social, por conta da radicalização.
“Minha mãe sempre teve um posicionamento de direita, mas moderada. Dentro do conhecimento que possuía na época, sendo moradora do interior gaúcho, foi favorável ao Golpe Militar. Com o passar do tempo e na época da abertura, já vivendo no meio universitário, na capital, passou a condenar os chamados excessos (torturas, mortes e desaparecimentos), mas manteve apoio ao chamado milagre econômico. E a partir da década de 1990 passou a considerar os prejuízos do período ditatorial num todo, a apoiar a redemocratização e a escolher seus candidatos no grupo central, eventualmente um centro esquerda”, lembra.
Até que, recentemente, os posicionamentos passaram a mudar. “Na época em que a Lava Jato se popularizou, renasceu a visão da juventude e ela se radicalizou rapidamente. Essas idéias a reaproximaram de amigas da juventude, todas com idades entre 78 e 92 anos. E certamente o Facebook e o Whatsapp foram fundamentais na radicalização. Ela era e é bombardeada com toda a sorte de material – cards, vídeos, textos. Isso deu uma sensação de pertencimento para uma pessoa que procurava atividades, cursos, qualquer coisa que a mantivesse ativa após a aposentadoria. Faz parte de uma faixa etária que vai perdendo referências, está fora do mercado de trabalho, mas muito ativa. O movimento a acolheu, a ouviu, estimulou antigas visões, proporcionou reencontros com amigos da infância e juventude. E, mais que tudo, oferece uma atividade: compartilhar todas as fake news, como uma obrigação diária capaz de resgatar um país, que sequer sabe qual é”, explica.
Com todas essas mudanças, a convivência entre mãe e filha se dificultou. “A agressividade passou a ser o tom de qualquer conversa, pois qualquer assunto era levado para o embate político. Passou a gritar, ter ataques de visível desequilíbrio emocional, me chamando de comunista e outros termos. Defendia atos, declarações e outros absurdos, mesmo quando era perceptível que ainda percebia que não eram aceitáveis. O convívio foi mantido, até por haver certas necessidades dela a serem supridas. Mantenho, ainda, o hábito de desmentir fake news. Mas também tive, e ainda tenho, respostas agressivas e pouco educadas. Atualmente, ela ainda compartilha fake news que distorcem acontecimentos e declarações que incitam ódio”, diz.
A filha acredita não haver mais tempo hábil para resgates. “Há uma perda definitiva do idoso. Se levou décadas para um crescimento, amparado em leitura e conhecimento formal, aos 84 anos certamente não há mais a reversão dessa radicalização”.
Em casos como esses, o psicólogo orienta tanto quem aborda quanto quem é abordado a sempre priorizarem uma comunicação não agressiva e a buscarem a ajuda de alguém que possa intermediar e contribuir de modo eficaz para a resolução do conflito. “Muitas vezes, as pessoas tentam intervir e mudar o comportamento do outro olhando apenas pela sua perspectiva. Porém, é essencial que qualquer ação direcionada ao outro considere o lugar dele, para que haja uma comunicação eficaz na troca de ideias e na adoção de novas condutas, se necessário. Uma das queixas mais frequentes que ouço em meu consultório é como os pais se sentem ultrajados quando seus filhos abordam essas questões abrindo mão do respeito e da compreensão de que do outro lado existe um homem ou uma mulher com uma história de vida e um lugar específico naquela relação familiar”, conclui.