Boom de novos modelos de inteligência artificial tem potencial de mudar padrões estéticos e já incomoda artistas e indústria, mas o que esse movimento realmente significa?
Por Mayra Couto
Recentemente o ChatGPT, modelo de inteligência artificial (IA), criado pela empresa OpenAi foi disponibilizado em uma versão gratuita para usuários de todo o mundo. A ferramenta de texto tem sido aliada na hora de usuários perguntarem informações de diversos tipos, desde escrever um texto sobre um tema específico até pedir um treino de academia, como tem viralizado no TikTok. Contudo, o ChatGPT, não é o único modelo – como os profissionais de informática chamam a ferramenta – que está em evolução rápida. Desde o ano passado, modelos que geram imagens e até vídeos têm chamado atenção pela qualidade de imagens que têm gerado e surgiu um novo questionamento: inteligência artificial vai poder fazer arte?
A correlação do ChatGPT com esses outros modelos de imagem é que ambos partem do mesmo princípio, porém a diferença é conseguir gerar imagens, vídeos, músicas e, por isso, são denominados “modelos generativos”. Como explica o professor Filipe Calegario do Centro de Informática da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE): “Basicamente este modelo é alimentado com uma grande quantidade de texto e imagens, mais de 1,5 bilhões de imagens. E na sequência é treinado para identificar características dessas imagens, através de descrição textual, ele gera um emaranhado de pixels que tem a ver com as palavras chaves escolhidas”.
Esse boom da utilização de IA na criação de imagens se intensificou de agosto de 2022 para cá. “Estamos chamando no meio de “Explosão Cambriana”, metáfora que faz referência ao período histórico onde apareceram muitas espécies. Isso porque surgiram muitos modelos de geração de imagem e texto”, comenta Calegario. No início do mês de maio de 2023, por exemplo, foi lançado um novo modelo o Midjourney 5.1, que consegue gerar imagens com qualidades estéticas muito aprimoradas.
Para chegarem nessa versão, a base de classificação estética das imagens foi realizada através de pesquisa com humanos: “O time por trás da criação do modelo pegou várias imagens e mostraram para grupos de pessoas, que davam notas de valor estético alto ou baixo. A partir dessa pesquisa, filtrou apenas imagens de estéticas altas. Esse tipo de pesquisa e coleta gera um modelo de inteligência artificial. Com esse modelo treinado, é possível colocar qualquer imagem e ele dará qual o valor estético ela possui no final”, comenta. Ou seja, nesse processo os especialistas acabam usando dois modelos de IA, um que classifica e outro que gera as imagens a partir das classificações obtidas pelo primeiro modelo.
Recentemente em uma nova versão, no ChatGPT 4 – modelo de IA na modalidade de texto – você consegue adicionar uma imagem e o modelo, entendendo a descrição, ativa outro modelo de IA gerativo de imagem.
Contudo, em relação ao questionamento da Inteligência Artificial, poder fazer arte é uma unanimidade entre pesquisadores da área de tecnologia e arte, que os artistas podem usar a IA como ferramenta, mas o modelo não cria sozinho. “É incrível o que a Inteligência Artificial pode fazer, mas sua capacidade de imaginar como seria o mundo a partir de descrições simples costuma ser muito limitada e contraintuitiva. Novos modelos, como o 2.0 Stable Diffusion, contam só com imagens permitidas, diferentes dos modelos 1.4 e 1.5, que usaram qualquer imagem ”, afirma Filipe Calegario.
Além disso, afinal o que é necessário ter para que uma imagem possa ser considerada arte? É o que comenta Sergio Venancio, artista, professor no Inteli e pesquisador na USP: “A arte antes tinha uma ligação com habilidades manuais, hoje passou para o campo das ideias e dos sentidos e como a gente transita sobre isso. A Inteligência Artificial não tem intenção criativa. Sempre é o ser humano que atribui significado, e mesmo que esteja usando um modelo de IA para gerar a imagem, precisou do olhar humano sobre a solicitação daqueles elementos e também no julgamento do resultado obtido. Não tem nenhuma máquina que está julgando por conta própria o que é ou não arte. Tanto faz as ferramentas, se você criou ou se apropriou de forma ética, podem ser feitas coisas muito interessantes. Não acredito que seja uma máquina fazendo isso para gente. Dependendo da história que conto em cima, a imagem vai ganhar um status de arte. É inevitável ter um humano no meio do caminho”.
A artista, professora de História da Arte e doutora pela UFPE, Maria do Carmo Nino, também destaca a importância do olhar humano e faz um comparativo com o surgimento da fotografia: ” Acredito que essas tecnologias surgem para serem usadas. Ela pode ser uma aliada no processo de criação da arte. Como esse fenômeno está bem no início, ainda não temos ninguém com um trabalho de destaque utilizando IA. Vejo como um elemento a mais com o qual os artistas podem lidar. É que nem a fotografia, por trás da câmera e equipamentos, tem um sujeito, um olhar artístico. Esses modelos tecnológicos, lembram isso. Continua necessária a visão do artista que está produzindo essas imagens, através dos elementos escolhidos”.
Regulamentação e ética
Apesar de muitos artistas e pesquisadores verem os modelos de IA como ferramenta para criar novos tipos de imagens e arte, depois do boom de alguns modelos no segundo semestre de 2022, artistas fizeram protestos na internet por suas artes estarem presentes em um modelo, sem autorização legal.
O modelo em questão foi o Stable Diffusion e um dos artistas que teve a surpresa negativa foi Greg Rutkowski, famoso por criar ilustrações para jogos como “Horizon Forbidden West” e “Anno”. Algumas obras do artista foram utilizadas, sem autorização para alimentar o banco de base do modelo, a questão é que após essa ação, as pessoas conseguem gerar novas imagens com características parecidas com as artes dele.
Mesmo com a repercussão negativa e com o pedido de remoção das imagens, a exclusão total está fora de controle, como explica o especialista Filipe Calegario: “Como o modelo foi treinado e disseminado na internet de uma forma ampla e sem controle, o artista não consegue parar a circulação. Contudo, a versão mais atualizada, o Stable Diffusion 2.0, conta só com imagens permitidas e com utilização liberada”.
Como as imagens de IA são geradas utilizando como base outras imagens já existentes e alimentadas no seu banco, também levanta-se um questionamento de apropriação. “É natural na história da arte, desde Duchamp, se apropriar de itens, e através de histórias contadas que a arte se faz. Superando os dilemas éticos e mais criativos do sentimento humano. A arte contemporânea continua do jeito que está sendo. É importante que o mundo da arte responda a isso. Usando os modelos de forma consciente e ética”, comenta Venancio.
Diante dessas questões, o que um artista ou algum entusiasta das artes precisa ter cuidado na hora de experimentar modelos de geração de imagem, é a autoria das imagens. Como explica Sergio Venancio: “O artista precisa ter cautela para não ferir o direito de imagem de outros artistas. É necessário tomar esse cuidado porque é uma linha tênue. Acredito em um caminho em que o artista começa a utilizar suas próprias imagens para treinar o modelo e a partir daí, a gente começa a falar de um benefício para o artista. Que essas bases sejam de seu direito autoral, para que você possa formar seu próximo modelo”.
Além disso, um outro caminho também é checar as fontes do modelo, quais imagens são utilizadas e tentar rastrear similaridades, através de ferramentas de engenharia reversa, como o Google que você coloca uma imagem lá e ele apresenta outras similares.
Contudo, ainda não existe nenhum tipo de regulação no mundo em relação a criação e uso desses modelos de inteligência artificial. Recentemente, há aproximadamente 2 meses, foi lançada uma carta pedindo para pausar por 6 meses pesquisas de novos modelos de linguagem para que a sociedade possa começar a regular essas tecnologias. Entre os nomes que assinaram a carta estão Elon Musk, fundador da Tesla, SpaceX e, agora também dono do Twitter; o historiador Yuval Noah Harari, autor de best-sellers como: “Sapiens: Uma breve história da humanidade”; e mais de mil especialistas de tecnologia. Porém a atitude divide opiniões: “Acredito que foi uma estratégia, quem manda no negócio no final das contas é o mercado. Algumas empresas vão fazer escondido. Mas é um alerta que não temos capacidade de trocar o pneu, enquanto o carro está andando. A política é mais lenta do que a tecnologia”, comenta Filipe Calegario.
No início de maio, o presidente do senado brasileiro Rodrigo Pacheco deu entrada em um projeto para regular modelos de inteligência artificial. A proposta prevê multa de até R$50 milhões para cada violação cometida por empresas de tecnologia. É um começo, mas o texto ainda precisa passar por algumas instâncias e pela votação no plenário, se passar segue para análise da Câmara dos Deputados.
Muitos profissionais de tecnologia acreditam na regulação, apesar de salientar o desproporcional andamento desse tipo de proposta em relação ao avanço tecnológico: “Harari fala que a IA é uma tecnologia, a única que estamos delegando o poder e ele acha perigoso. Concordo em partes, porque se começamos a automatizar partes do pensamento humano, isso pode ter problemas éticos e de responsabilização. A máquina pode até tomar algumas decisões, mas quem vamos culpar, se ela tomar uma má decisão”, reflete Calegario.