Em “O que é meu”, José Henrique Bortoluci nos coloca na boleia do seu pai caminhoneiro

Obra de não ficção literária, como define o próprio autor, nos leva para conferir o Brasil dos anos 1960 até os dias atuais pela vida do seu pai

Aline Viana

José Henrique Bortoluci assumiu no início da pandemia de Covid-19 o desafio de escrever sobre a vida de seu pai, José “Didi” Bortoluci, e como ela se entrelaça e reflete a história do Brasil. Desse projeto, nasceu “O que é meu”, pela editora Fósforo.

Em entrevista ao programa “Conversa com o Bial”, José Henrique revela que pensou pela primeira vez na adolescência em como seria conectar as histórias que ele ouvia do pai caminhoneiro, que voltava pra casa a cada trinta ou quarenta dias, com o que se passava no país. 

Pouco após o início do processo de entrevistas e da quarentena, a família Bortolucci é bombardeada com a notícia de que o patriarca, que já era cardíaco, estava com um câncer de intestino. A obra ganha, assim, um toque de urgência imprevisto pelo autor.

Toda família tem um membro “cuja história de vida daria um livro”, mas poucos desses livros teriam autores tão bem preparados para a jornada. Bortoluci se propôs a criar uma não-ficção literária que dialoga bastante com o primeiro livro de Annie Ernaux, “O lugar” (recém publicado no Brasil pela mesma editora Fósforo). 

Essa conversa entre as duas obras se dá pelo olhar do filho que ascende socialmente por meio dos esforços de toda família e, aos poucos, se distancia desse berço. Seja pela visão de mundo (o “universo em que forjou sua masculinidade é o das relações tradicionais, hierárquicas e embebidas de uma linguagem moralista e católica típicas da zona rural”), pela linguagem, pela cultura que consome e até pelos pequenos hábitos que constituem um diferencial de classe (“Ele gosta de pratos fundos e usa facas de mesa para separar os dentes dos garfos…”).

Bortoluci conta que o pai não entendia muito o porquê de ele querer escrever um livro sobre si, mas topou a empreitada apenas por ser saber que aquilo “poderia ajudar” ao filho. É o mesmo pai que ao conversar com o filho sobre o que este pesquisava no doutorado (a política em torno da arquitetura e da habitação popular) vai direto ao ponto: “Fala pra eles que os pobres merece ter casas maiores”. 

Diferentemente de Ernaux, Bortolucci conseguiu preservar ainda um olhar de afeto e admiração pelo pai caminhoneiro, sem com isso perder o viés crítico. O pai que deixou de passar o Natal com a família para levar uma carga de vinho de Porto Alegre (RS) para Boa Vista (RR), na outra ponta do país em tempo recorde, com o auxílio de outros irmãos de estrada.

O pai que atravessou trechos atolados de estrada em desafio aos militares que interditaram a via; viu nascer aos trancos e barrancos a Transamazônica; enfrentou com um amigo “da pá virada” ladrões de carga; que ajudou a construir a rodovia Mogi-Bertioga enquanto tinha o mar no horizonte (“Trabalhei anos ali, mas a vida do caminhoneiro era a vida da estrada, então eu nunca molhei o pé no mar aqueles anos todos”). 

É o mesmo pai que acreditou na primeira grande onda de empreendedorismo que se viu neste país, estimulada pelo governo militar. Onde uma pessoa humilde enxergava em se tornar um caminhoneiro como o primeiro passo para transcender a vida de empregado/ operário e acabava, via de regra, presa às prestações do caminhão e à distância da família. E, para não fugir do clichê, regra que trazia exceções que a confirmavam, como o conhecido que conseguia vencer na vida e construir sua própria frota.

A leveza também está presente no livro, com capítulos dedicados aos causos de estrada e às lembranças generosas impagáveis de amigos, como Jaques e Manelão. 

José Henrique compara a doença do pai com um processo de colonização do organismo (“O câncer é uma doença expansionista; estabelece colônias em paisagens hostis, buscando ‘refúgio’ num órgão e depois emigrando para outro”) e todas as batalhas que o corpo, o paciente, a família e os médicos empreendem para vencer a invasão. Nessa análise, o autor não deixa de anotar como os médicos, supostos aliados nessa guerra, se tornam hostis diante dos pedidos da família e dos pacientes por tornar seus planos mais compreensíveis.

Poucas vezes o universo dos caminhoneiros, que hoje concentra uma imensidão de brasileiros e nível significativo de poder político, foi abordado pelas artes. Essa pequena obra preenche parte desse hiato com sucesso. 

Ficha técnica:
“O que é meu”
José Henrique Bortoluci

144 páginas | Editora Fósforo

Preços: R$ 51,97 (edição impressa) e R$ 35,91 (e-book)

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