Em obra que compila vários textos extraídos de palestras suas, Krenak mostra como a filosofia dos povos originários analisa o Brasil e o mundo neste século 21
Por Aline Viana
Mudar um paradigma é algo complicado. Podemos levar anos para construir um conceito em nossa mente. E há outras ideias desenvolvidas ao longo de dezenas ou centenas de anos pela sociedade. A visão que temos sobre os povos originários brasileiros se encaixa justamente nesse segundo perfil.
Ailton Krenak em seu “Futuro Ancestral” (editora Companhia das Letras, 2022), nos convoca a questionar as ideias eurocêntricas que nosso país adotou desde os tempos da colônia e hoje têm como verdades.
Depois da tragédia do povo yanomami, que assistimos estarrecidos no começo desde ano, voltar à obra literária dos povos indígenas me pareceu no mínimo uma obrigação.
Krenak participou da Assembleia Constituinte que estabeleceu a Constituição de 1988. Na época, ele fez um discurso vestido de terno e gravata (figurino obrigatório) onde ia pintando o rosto de jenipapo, como se fosse um guerreiro se preparando para um embate iminente.
O autor nasceu na região do Vale do Rio Doce, onde habita o povo Krenak, é ativista, ambientalista e doutor honoris causa pela Universidade de Juiz de Fora (MG). E é, principalmente, uma das lideranças mais engajadas em dialogar com o povo não indígena.
A obra que abordamos aqui faz uma convocação para que os homens foquem no momento presente, pois “Para começar, o futuro não existe – nós o imaginamos. Dizer que alguma coisa vai acontecer no futuro não existe nada de nós, pois ele é uma ilusão”.
Um exemplo disso, na visão de Ailton Krenak, foi a conferência Eco 92, realizada no Rio de Janeiro (RJ), que propôs uma série de ações futuras, que por não terem sido aplicadas gerou a necessidade da COP 27, no Egito.
Em contraposição, o “passado é ancestral porque já esteve aqui”. É um convite para resgatarmos os valores de nossos antepassados, que foram a base para o nosso hoje e que aos poucos abandonamos em prol, de novo, do futuro, por termos vergonha ou por esquecimento.
Podemos fazer uma leitura pouca ortodoxa e fazer um link com os versos de Emicida: “Tudo o que nóis tem é nóis”. É o agora. É este planeta, para o qual não temos plano B. É esta vida.
Paradoxalmente, alguns desses desafios são também “pra ontem”, caso da inescapável questão ambiental.
Os textos são de rápida leitura e passam por temas como a relação das cidades brasileiras que costumam dar às costas aos seus rios; com as nossas matas; da relação dos povos originários com uma floresta que hoje só existe no campo do imaginário graças ao desmatamento em voga desde o achamento do Brasil pelos portugueses.
“Eu acho engraçado que tem gente que aceita com naturalidade considerar um rio sagrado desde que ele esteja lá na Índia, e saiba de cor que ele se chama Ganges, enquanto ousa saquear o corpo do rio ao lado, cujo nome desconhece, para fazer resfriamento de ciclos industriais e outros absurdos”.
Reproduzimos a postura dos colonizadores e continuamos desprezando tanto o conhecimento índigena sobre a natureza quanto sobre sua visão de mundo.
Krenak cita, por exemplo, o fato de ensinarmos às crianças que a terra “suja” as mãos, fazendo com que elas evitem tudo que diz respeito ao solo, à natureza e à vida selvagem. Nessas, o índio por tabela se torna objeto de desprezo, quando não de ódio.
Ao mesmo tempo, ele cobra uma escola que não seja só prédio, que seja um espaço no qual crianças compartilhem experiências que as prepare para a vida – diferente da meta de alguns adultos que seus filhos sejam adestrados desde a mais tenra idade para gabaritar no vestibular.
Para ele, um futuro possível (nos moldes como nós pensamos o futuro), deveria ser construído por crianças que questionassem o que nós, adultos, temos feito para destruir o nosso habitat. Pense no mundo liderado por Greta Thunberg e sua turma. É o mais puro suco de choque cultural, ao menos nesses tempos tão conservadores.
“Não podemos nos render à narrativa de fim de mundo que tem nos assombrado, porque ela serve para nos fazer desistir dos nossos sonhos, e dentro dos nossos sonhos estão as memórias da Terra e de nossos ancestrais”.
Krenak diz que os povos indígenas perdurarão enquanto houver humanidade. Mas, que a Terra, por outro lado, sobreviverá a nós todos. O que vai ser de nós diante do aquecimento do planeta? Da inflação global? Do risco de uma nova pandemia? A resposta está no hoje.
Os textos foram compilados a partir de palestras em eventos e lives de Krenak ao longo de 2020 e 2021 e são uma ponte que nos coloca em contato com esse povo que é nosso ancestral, ao mesmo tempo, que segue ao nosso lado. Vale fazer essa travessia.
Ficha técnica:
Futuro Ancestral
Autor: Ailton Krenak
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 34,90 (livro impresso) e R$ 23,90