Mulheres são mais cobradas por sua aparência e, apesar de viverem mais, as condições sociais em que vivem nem sempre contribuem para um envelhecimento com qualidade
Por Ana Carolina Pereira
Em sua publicação “Corpo, Envelhecimento e Felicidade na Cultura Brasileira”, a antropóloga Mirian Goldenberg, especialista em gênero e envelhecimento, trouxe um dado que pode parecer bastante óbvio: o envelhecimento começa mais cedo para as mulheres. Aos 30 anos, de acordo com a especialista, as brasileiras já estão preocupadas com os fios de cabelos brancos, as ruguinhas que começam a aparecer e são pautadas pela chamada “ditadura da aparência”, que Goldenberg define como uma prisão da qual é preciso se libertar.
Paradoxalmente, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), as mulheres, em todos os cantos do planeta, vivem mais do que os homens. Mas essa também não é, em todos os casos, uma boa notícia. De acordo com Ivete Berkenbrock, presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), mais mulheres chegam aos 100 anos, e passam dele, mas não necessariamente em melhores condições do que os homens. E muitos dos fatores que contribuem para esse cenário têm a ver com o papel social imposto a elas ao longo do tempo.
“As mulheres não tinham liberdade para trabalhar fora de casa, sua atividade consistia em criar filhos e atender demandas do lar e do marido. Essa população envelheceu sem ganho real financeiro. Com a evolução da sociedade, ainda hoje o trabalho da mulher é menos remunerado, sem contar que as suas questões de saúde não começam na velhice: elas passam por transformações biológicas intensas – como puberdade, maternidade e menopausa. Assim, por mais que as mulheres cuidem mais da saúde física, indo mais ao médico, ainda há outros fatores que afetam sua qualidade de vida”.
Mais fácil para eles
A arquiteta Alice Vilar conta suas lembranças de infância, que resumem de forma prática o que significa envelhecer para as mulheres. Ela relata que tem vívidas memórias de seus avós e de seus pais de formas bastante diferentes.
“Eu me lembro de enxergar o meu avô como um ‘sessentão bonitão’, tinha cabelos e barba brancos, mas isso não era um problema. A mesma coisa o meu pai, que era considerado charmoso por ser grisalho. Já a minha avó era uma senhora vista como frágil e os cabelos brancos faziam parte dessa narrativa, ela parecia ser muito mais velha do que realmente era. E a minha mãe devia ter a idade que tenho hoje. Ela era bonita, mas eu sempre reparei que ela se esforçava demais para ser vista assim e que uma vez a cada quinze dias pintava os cabelos, porque deixar os fios brancos à mostra era sinal de desleixo”.
Alice tem, hoje, 43 anos e acredita gozar das mudanças pelas quais passou a sociedade nos últimos tempo, mas afirma que ainda acha o mundo muito cruel com as mulheres. “Nós vivemos alguns fenômenos importantes. Na pandemia, por exemplo, ganhamos o aval da sociedade para ‘assumir’ os cabelos brancos. Mas veja, como comentei do meu avô e do meu pai: eles nunca precisaram receber essa permissão. A natureza só agiu neles e pronto, tudo estava bem. E isso acontece também com as ‘barrigas de chopp’ e com a calvície. As mulheres precisam lutar para conquistar todo e qualquer espaço, até quando o assunto é sua própria aparência, é muito exaustivo”, diz.
Bárbara Côrtes, que é antropóloga e mestre em ciências sociais, reforça que a percepção de Alice é verdadeira e tem explicação. Segundo ela há, de fato, uma desautorização mais expressa e punitiva ao envelhecimento feminino exatamente porque, se o envelhecimento é lido pela chave da função social, é, então, atravessado pelo conjunto de expectativas associado ao papel social que cada indivíduo ocupa.
Como exemplo, Bárbara cita a socióloga Dorothy Smith, que traz uma percepção da “criação da cultura” como sendo um exercício de poder dos homens, que produz de forma sistêmica as definições da diferença entre sujeitos, com base em uma perspectiva dominante.
“Essa perspectiva é determinante daquilo que compreendemos como gênero, que é um conjunto de elementos socialmente atribuídos a cada sexo, e que varia conforme o contexto histórico e cultural. A concepção de gênero moderna (e pós-moderna) fantasia o sexo feminino essencialmente em dois papéis produtivos: o do cuidado e o da lascívia. Ou seja, a mulher é situada como um corpo produtivo, manipulável, servil e descartável. Esse corpo é, portanto, jovem, saudável, e constitui sujeitos de pouca experiência ou maturidade, num imaginário que teme a autonomia intelectual feminina”, aponta.
Para a antropóloga, mesmo com os recentes avanços, a sociedade ainda está bem longe de uma realidade social em que as mulheres estejam libertas dessas amarras. “Em um cenário que eu consideraria mais otimista, é possível que o envelhecimento da população global traga propostas mais construtivas para lidar com as décadas avançadas da vida, que não se resumem a uma negação da velhice e da mortalidade como fatos humanos”.
Envelhecer com propósito
A negação da velhice, para Alice, é um dos maiores problemas da atualidade, a começar pelos cremes faciais e outros produtos de cuidado com a pele e corpo que trazem em suas embalagens a descrição “anti-idade”.
“Eu conheço poucas mulheres na faixa dos 40 que ainda não fizeram nenhum procedimento estético, por exemplo, mas conheço várias – eu incluída – que se sentem no ápice da vida, ainda com muita disposição, mas com muito mais maturidade do que tinham aos 20 anos, por exemplo. Se antes, os 40 era o começo do fim, eu acredito que agora os 40 são o começo de uma fase importante, ainda jovem. E os 60, que é quando começa, em teoria, a velhice em si, é quando eu vou querer aproveitar muito a vida, com mais tempo e me sentindo ainda muito bonita”, diz.
Ivete Berkenbrock corrobora, afirmando que envelhecer é uma vitória e que se há um fator que realmente mudou é o que as pessoas esperam do envelhecimento. “Há 30 anos, o etarismo era muito forte, a sociedade não esperava mais nada de quem envelhecia. Hoje, é visível as diferenças das expectativas de propósitos de quem está envelhecendo. Ainda tem o preconceito, mas também há mais possibilidade. As pessoas, principalmente as mulheres, têm mais expectativas de viver uma velhice mais participativa, mais inserida em suas comunidades e famílias e mais feliz. O que se observa é que elas não querem só viver mais tempo, mas viver melhor e envelhecer melhor”.