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“Travessia” parece um filme ruim do streaming

Jonathan Pereira

Muito se fala sobre a baixa audiência de “Travessia” e o quanto é difícil acompanhar com gosto a novela das 9. Mas o que acontece com a trama de Glória Perez? Vários pontos, somados, trazem ao telespectador a sensação de que está vendo não uma novela, mas um filme ruim no streaming.

Antes, justiça seja feita: é comum que o público, após se envolver demais com um enredo, leve um tempo para gostar da história que a sucede. A própria autora passou por isso dez anos atrás, quando “Salve Jorge” substituiu “Avenida Brasil”. Então, qualquer novela que viesse após o fenômeno “Pantanal” sofreria no Ibope.

Falando na trama de 2012/13, a autora resolveu trazer de volta três personagens de “Salve Jorge” em “Travessia”: a delegada Helô (Giovanna Antonelli), Stenio (Alexandre Nero) e a empregada Creuza (Luci Pereira). A justificativa dada na coletiva de lançamento é que “o público está sempre pedindo eles de volta”. Só que, até o momento, a sensação causada é de saturação.

Os dois começam a história separados, e no início acaba rolando um triângulo com Leonor (Vanessa Giácomo). O público mais costumeiro em acompanhar novelas das 9, vendo Giovanna, Nero e Giácomo juntos, automaticamente lembra de “A Regra do Jogo” (2015), quando os três viviam, respectivamente, Atena, Romero Rômulo e Tóia – e ocupavam boa parte do tempo de tela com cansativas idas e vindas.

Vê-los de novo em um triângulo trouxe um “mais do mesmo” – e a impressão se repete em outros núcleos, em parte pela insistência de Glória em dar o mesmo tipo de personagem para os mesmos atores em suas tramas. Para citar apenas dois exemplos, Humberto Martins interpreta mais um empresário, Guerra, como em “A Força do Querer” (2017) e “Caminho das Índias” (2009); Raul Gazolla está novamente ligado ao universo de academia, como se viu em “O Clone” (2001) e “A Força do Querer”.

Mesmo quando não se repete, a escalação coloca atores em papéis muito parecidos com os que acabaram de fazer. Quando se olha Oto (Rômulo Estrela), a impressão é que a qualquer momento ele dirá ‘Angel’, já que o visual e sua interpretação são praticamente os mesmos do investigador Cristiano de “Verdades Secretas 2”, lançada no Globoplay ano passado e exibida entre outubro e novembro na TV aberta, já com “Travessia” no ar.

Há uma má distribuição de espaço entre as personagens, fazendo com que vários desinteressantes, como Guerra, Stenio e Helô, cheguem a ocupar metade do capítulo, sem que nada muito relevante lhes aconteça. A história vendida como principal – a fake news envolvendo Brisa (Lucy Alves, sempre bem) – acabou ficando em segundo plano nos capítulos iniciais, e o destaque dado a Chiara (Jade Picon) fez parecer que a protagonista era outra, tornando difícil uma identificação imediata com a história.

Fotos: divulgação/Globo

A tecnologia, que seria o mote principal, acaba sendo mal explorada/ficando em segundo plano – até agora as inserções sobre deepfake, dark web e metaverso foram pouco desenvolvidas, perto da profundidade que Glória costuma dar aos merchandisings sociais que escolhe.

O tema, aliás, geralmente afasta o telespectador – vide “Tempos Modernos” (2010) e “Morde e Assopra” (2011, salva da metade pro final pela Dulce de Cássia Kis). Mas também há histórias em que a tecnologia consegue ser bem inserida/soar natural: dois exemplos recentes são “Bom Sucesso” (2019) e “Mar do Sertão”, a atual das 6, em que personagens postam/falam de redes sociais com fácil assimilação ao cotidiano.

As situações de “Travessia”, além de desinteressantes, parecem um ‘looping eterno’, levando os personagens, perdidos, a lugar nenhum: a impressão é de que ‘nada acontece’ eterno, permeado por uma ou outra cena de sexo e algum fato pontual relevante de vez em quando. Ou seja, todos os ingredientes de um filme ruim no streaming.

As investigações de “Donelô” e afins acabam rasas e não envolvem. Além disso, a direção de Mauro Mendonça Filho – competente em sucessos como “Verdades Secretas” (2015) e “O Astro” (2011) às vezes parece não combinar com o estilo da autora – colocando músicas ou tom de tensão em diálogos que não sustentam o clima.

Não se pode acusar Jade pelo fracasso da trama – e o barulho sobre sua escalação não se justifica, já que é praxe da autora em toda novela lançar alguém -seja no protagonismo ou com grande destaque. Ou já esqueceram do cigano Igor (Ricardo Macchi) de ‘Explode Coração’ (1995)? A dor de cotovelo parece mais por ela já ser rica na vida real e ainda poder beijar o galã Chay Suede.

Também não podemos esquecer que, salvo raras exceções, as novelas da autora demoram a engrenar – o que vira um problema com um público cada vez mais impaciente e menos atento a uma tela só, com o passar dos anos.  Mas, do jeito que está, não dá para dedicar uma hora diária – seja no horário que passa na TV ou no Globoplay  – para torcer ou sonhar com o futuro das personagens de “Travessia”. Além do indiscutível talento, Glória tem muito tempo para virar o jogo e descobrir como tornar a trama mais atrativa até abril, quando está prevista para terminar. Ou simplesmente contar a história que quiser, como Lícia Manzo com “Um Lugar ao Sol”, antecessora de “Pantanal”, que já estava totalmente gravada quando estreou.

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