O gênero foi o grande destaque nos cinemas na temporada. Tanto em quantidade como em qualidade e se mostrou o porto-seguro de Hollywood em termos de criatividade e ousadia
Por Reinaldo Glioche
Um grupo de jovens aluga uma casa em uma fazenda remota em um rinquão dos EUA com o objetivo de rodar um filme pornô durante o fim de semana. O idoso casal de anfitriões nem desconfia das intenções da turma e mesmo assim se mostra bastante arredio àquela energia jovem da cidade. Essa é a premissa de “X – A Marca da Morte”, uma das boas surpresas do cinema em 2022 e um dos vértices para fazer deste ano, um dos melhores do terror no cinema recente.
O misto de horror e sátira deu tão certo – crítica e público abraçaram o filme com entusiasmo – que Ti West rodou em tempo recorde uma prequela do filme, a tempo de lança-la no pomposo festival de Veneza. “Pearl” conta a história de origem da personagem título, a heroína complexa e um tanto insana de Mia Goth, que aqui ostenta uma das melhores performances da temporada.
“Pearl”, embora complemente, é radicalmente diferente na proposta, forma e narrativa de “X”, o que não só ressalta o talento de West como cineasta – ganhou elogios efusivos de Martin Scorsese – como expressa a multiplicidade do gênero que, ao longo do ano, viu velhos conhecidos e ótimas surpresas ganharem terreno.
Os bispos de sempre
Michael Myers ainda está entre nós. Depois do atabalhoado “Halloween Kills”, David Gordon Green encerra sua trilogia com algum esforço criativo no irregular, mas interessante “Halloween Ends”, que tece um comentário sobre a cultura do medo e a obsessão como principal polo de uma existência.
Sem qualquer pretensão além de um bom gore, “O Massacre da Serra Elétrica: O retorno de Leatherface” é, para o bem e para o mal, a versão da Netflix para essa história já tão explorada. Há algumas ótimas cenas em uma embalagem nem tão convincente.
Decepção mesmo foi com outra máscara. Os responsáveis pelo ótimo “Casamento Sangrento” foram para Woodsboro e juntaram diferentes gerações no quinto “Pânico”, o primeiro sem envolvimento de Wes Craven, principal mente criativa da franquia, morto em 2015. O longa, lançado em janeiro, talvez mereça uma menção na lista dos piores do ano, mas a boa bilheteria garantiu mais uma sequência, que estreia no primeiro trimestre de 2023.
“Hellraiser”, o cult de Clive Baker, ganhou uma refilmagem lançada diretamente no streaming. Embora com um desenho de produção chamativo, falta ao filme o viés agonizante e diabólico dos longas oitentistas.
Os mestres
O ano começou com a estreia do vencedor da Palma de Ouro em 2021 “Titane” e o mesmo Mubi que adquiriu o ótimo body horror de Julie Ducournau, trouxe com exclusividade para o País o retorno de David Cronenberg ao gênero. “Crimes do Futuro”, também exibido em Cannes, é um triunfo cheio de reverberações políticas e filosóficas sobre corpo, arte e insurgências sociais. É, também, um filme de terror mais reflexivo do que o gênero parece admitir no momento.
É nessa toada de reflexão que flagramos “Não! Não Olhe!”, terceiro longa de Jordan Peele, já alçado ao status de autor do gênero; aqui ele derrapa, mas seu filme traz imagens poderosas e uma ambição que só faz bem a um gênero tido como marginal há tanto tempo.
Ainda que a alcunha de mestre seja um tanto pesada, dois cineastas com aura cult apresentaram bons trabalhos no ano. Scott Derrickson, de “A Entidade” e “O Exorcismo de Emily Rose”, alcançou incrível sucesso comercial e de crítica com “O Telefone Preto”, uma crônica que navega entre o cinismo social, psicopatia e sobrenatural. Já “Men – Faces do Medo”, se vale de metáforas simples, outras bem herméticas, para fazer um comentário sobre violência de gênero e abuso. Alex Garland jamais escondeu a pretensão de seu cinema. Aqui ela atrapalha um pouco, mas enseja algumas das imagens mais perturbadoras do ano.
As boas surpresas
O que fez o gênero brilhar mesmo no ano, entretanto, foram as surpresas. Capitaneadas, principalmente, pelas produções do estúdio A24, um especialista no subgênero terror elevado. É nesse escopo que se assenta “Mortes, Mortes, Mortes”, primeiro filme nos EUA da holandesa Halina Reijn, um petardo que mira na geração Z com gosto e faz do slasher uma divertida brincadeira de “quem matou?” com uma surpresa que ressignifica todo o longa.
“Sorria”, maior sucesso comercial do gênero em 2022 e potencialmente uma nova franquia, tem um ponto de vista inquietante sobre suicídio e saúde mental em uma das incursões mais angustiantes do gênero nos temas.
Quebra de expectativas é o principal norte de “Noites Brutais”, em cartaz no Star+, um filme que fala dos monstros atrás das paredes e das presas que assombram os predadores, além de trazer Justin Long (“Olhos Famintos”) de volta ao gênero.
Outro veterano que gosta de se exercitar no gênero é Kevin Bacon e em “They/Them”, disponível no Telecine, ele vive o responsável por um acampamento que tem como objetivo a conversão heterossexual de gays. A maneira como o longa brinca com a woke culture é um verdadeiro achado.
Por falar em preconceito, o racismo é a principal estrutura de “Fantasmas do Passado”, um longa que não dá sustos, mas aposta em seu adorno assustador para reter uma das experiências mais impactantes do gênero na temporada. Já “Fresh”, parece uma comédia romântica, mas é um conto moral de terror francamente incômodo, além de ser uma das obras mais poderosas já feitas sobre sexismo em Hollywood.
Fora do eixo hollywoodiano, porém, nada foi mais incisivo e aterrador no ano do que o dinamarquês “Speak No Evil”, ainda inédito no Brasil. O longa de Christian Tafdrup mostra um casal dinamarquês que topa passar um fim de semana na casa de veraneio de um casal holandês que conheceram em uma viagem. Dos pequenos incômodos ao inimaginável, será uma viagem inesquecível para o público.