“Anora” fala da decadência moral e sensorial do sonhar

Por Reinaldo Glioche

Queridinho do cinema independente, Sean Baker rapidamente se tornou o cineasta que melhor captura os sonhos falidos na América. Com atenção e carinho por personagens marginalizados pela sociedade, o cineasta construiu um olhar tão crítico quanto tenro em filmes como “Tangerine” (2015), “Projeto Flórida” ( 2017 ), “Red Rocket” (2021) e atinge seu ápice criativo em “Anora” (2024), merecidamente vencedor da Palma de Ouro em Cannes.

No longa, Mikey Madison, em atuação definidora, vive a stripper que dá nome ao filme. Ela prefere ser chamada de Ani e sua rotina se resume a trabalhar à noite e dormir de dia. Ela não parece ter ambição que toque uma vida fora daquela realidade. E, aparentemente, está tudo bem. Mas esse aparente conformismo é subvertido pela presença de Ivan (Mark Eydelshteyn), filho de um oligarca russo que está passando uma temporada nos EUA.

O garoto se interessa por Ani depois de uma noite de diversão e a rotina de nossa heroína começa a gravitar em torno de Ivan, o que rende dinheiro e muita diversão. Entramos no território do niilismo com uma leitura moderna de Cinderela e ecos de “Uma Linda Mulher”.

Dia desses o garoto pede Ani em casamento. Por que não? E ela parece ter “tirado a sorte grande”, como comenta uma colega da noite. Mas esse idílio é interrompido quando funcionários do pai de Ivan, que mais parecem capangas da máfia, surgem na mansão em que os pombinhos moram com o objetivo de fazê-los anular o casamento.

O que vem a seguir é uma desventura melancólica pautada por alguns momentos de humor e outros de violência física e emocional. Baker trafega por gêneros para tecer um comentário sobre as efemeridades da existência, especialmente para aqueles desprovidos de recursos. Mais: impele a convicção de que sonhar, hoje, é um ônus que poucos podem se permitir. Trata-se de uma visão menos otimista do que a apresentada em seus últimos filmes, mas não menos esperançosa, como atesta a potente e emocionante cena final.

“Anora” é cativante por muitas razões. O roteiro inteligente emana reflexões diversas sobre como pessoas na mesma fase da vida divergem em inteligência emocional e maturidade e como o dinheiro é um equalizador de relações – sejam elas afetivas ou de qualquer outra ordem. A direção de Baker, que além de escrever, também produz e edita o longa, é plural, mas focada; firme, mas generosa e sabe ser intuitiva quando precisa.

O grande destaque do longa, porém, é Mikey Madison que ilumina a tela com sua vulnerabilidade e que expõe todas as camadas de uma personagem complexa com um misto de doçura, sensualidade e tristeza. É um trabalho realmente especial daqueles que se embrenham no imaginário cultural.  

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