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Desafio à percepção da realidade, surrealismo completa 100 anos como farol das artes

Redação Culurize-se

O movimento surrealista, que celebra seu centenário em 2024, é uma das correntes artísticas mais revolucionárias e influentes do século XX. Nasceu oficialmente em 1924 com a publicação do “Manifesto Surrealista” por André Breton, que havia sido profundamente influenciado por suas experiências durante a Primeira Guerra Mundial. Como estudante de medicina, Breton trabalhou em hospitais que cuidavam de soldados traumatizados, onde experimentou técnicas inspiradas nas teorias psicanalíticas de Freud, lançando palavras aleatórias para evocar respostas espontâneas dos pacientes. Essa experiência direta com o inconsciente humano e os efeitos do trauma o influenciaria fortemente ao definir os rumos do surrealismo.

O surrealismo buscava libertar o pensamento do domínio da razão e explorar o mundo dos sonhos e do inconsciente. Breton acreditava que o racionalismo e o progresso tecnológico, que tinham sido celebrados como promessas de um futuro próspero, haviam fracassado ao mergulhar o mundo na carnificina da Primeira Guerra Mundial e na devastação econômica subsequente. Para ele e outros membros do movimento, como Max Ernst, Joan Miró e Salvador Dalí, o surrealismo era um antídoto para a suposta esterilidade do mundo moderno.

André Breton e o manifesto surrealista | Foto: Reprodução/Internet

As raízes do surrealismo

O surrealismo, em parte, emergiu como uma evolução do movimento Dadá, que havia surgido durante a Primeira Guerra como uma resposta à irracionalidade do conflito e da ordem social que o provocou. No entanto, enquanto o Dadá era amplamente niilista e buscava desconstruir a lógica e as convenções estabelecidas, o surrealismo ia além da rejeição do racional. O que Breton e seus colegas surrealistas propunham era uma nova forma de perceber e representar a realidade, em que o consciente e o inconsciente, o sonho e a vigília, poderiam se fundir em uma “surrealidade” — uma realidade “superior” ou “além” do mundo racional.

O termo “surreal”, adotado por Breton a partir de um comentário do poeta Guillaume Apollinaire sobre uma peça teatral, expressava essa noção de algo “acima da realidade”. Essa ideia foi central para os artistas e escritores do movimento, que se valeram de várias técnicas para acessar e expressar o inconsciente, como a escrita automática, em que os escritores, sem um planejamento consciente, deixavam as palavras fluírem diretamente do subconsciente. Essa técnica era amplamente utilizada por autores como Louis Aragon, Paul Éluard e Robert Desnos, todos membros do círculo surrealista de Breton.

O impacto nas artes visuais

Nas artes visuais, o surrealismo encontrou alguns de seus mais célebres representantes. Salvador Dalí, com suas paisagens oníricas e figuras distorcidas, tornou-se um dos rostos mais reconhecíveis do movimento. Dalí, no entanto, também personificava as contradições internas do surrealismo. Embora fosse amplamente aclamado por sua habilidade em capturar a estranheza dos sonhos, ele foi expulso do movimento por suas simpatias com o fascismo e por discordar das posturas marxistas de Breton. Apesar disso, Dalí afirmou que “o surrealismo sou eu”, refletindo seu ego monumental e a confiança em sua visão artística.

Outro grande nome das artes visuais surrealistas foi o belga René Magritte, conhecido por suas justaposições enigmáticas de objetos cotidianos que desafiam as percepções convencionais do espectador. Seu uso de imagens aparentemente simples, mas profundamente provocativas, explorava a tensão entre o que vemos e o que acreditamos entender sobre o mundo ao nosso redor. Joan Miró, por sua vez, trouxe um estilo mais abstrato ao surrealismo, com formas vibrantes e orgânicas que pareciam flutuar em universos imaginários, desprovidos de lógica ou estrutura formal.

Foto: Reprodução/Internet

Influências no cinema, teatro e fotografia

O cinema também desempenhou um papel fundamental na difusão do surrealismo. Luis Buñuel, em colaboração com Salvador Dalí, produziu o icônico curta-metragem “Um Cão Andaluz” (1929), que se destacou por sua narrativa não-linear e suas imagens perturbadoras, como a famosa cena de um olho sendo cortado por uma navalha. Essa abordagem, profundamente imbuída de simbolismo e desprovida de qualquer lógica tradicional, influenciou gerações de cineastas. Jean Cocteau, outro cineasta surrealista importante, explorou os limites entre realidade e fantasia em filmes como “O Sangue de um Poeta” (1930).

Na fotografia, Man Ray foi um dos principais expoentes do surrealismo, experimentando com técnicas como a solarização e a rayografia, em que objetos eram colocados diretamente sobre o papel fotográfico, criando imagens etéreas que desafiavam as normas tradicionais de representação visual.

Mesmo o teatro foi impactado pelo surrealismo, com figuras como Antonin Artaud, que desenvolveu o conceito do Teatro da Crueldade, uma forma de teatro que buscava transcender as palavras e atingir diretamente os sentidos do público por meio de uma experiência visceral e muitas vezes perturbadora.

Contradições políticas e o papel das mulheres

O surrealismo, assim como seus artistas, era uma corrente de contradições. André Breton foi próximo do revolucionário Leon Trotsky e defendia a ligação do movimento ao comunismo. Contudo, ele também precisou lançar um segundo manifesto para reafirmar o compromisso marxista do surrealismo, após acusações de que o movimento havia tomado um rumo conservador. A saída de Salvador Dalí, por exemplo, refletiu as tensões ideológicas internas, já que Dalí simpatizava com o fascismo, enquanto Breton mantinha uma postura anticapitalista.

Paradoxalmente, o movimento, que muitas vezes retratava a mulher de forma objetificada, foi também um dos primeiros a abrir espaço para artistas mulheres nas vanguardas modernistas. Leonora Carrington, Dora Maar, Dorothea Tanning e Suzanne van Damme são exemplos de mulheres que desempenharam papéis fundamentais dentro do movimento, embora muitas vezes tenham sido subestimadas em comparação com seus colegas homens. Gala, esposa de Dalí, por exemplo, foi não apenas sua musa, mas uma figura central em sua carreira, influenciando diretamente seu trabalho e gerindo suas finanças.

O legado do surrealismo

Cena do filme “Cidade dos Sonhos”, de David Lynch | Foto: Divulgação

A influência do surrealismo se estendeu muito além de seu período inicial. Movimentos artísticos posteriores, como o expressionismo abstrato e a pop art, foram profundamente marcados por suas inovações. Além disso, o surrealismo permeou a cultura popular de formas variadas, desde os filmes de David Lynch até as obras literárias de Haruki Murakami e as criações de moda de estilistas como Elsa Schiaparelli.

À medida que celebramos 100 anos de surrealismo, fica claro que seu legado permanece vivo e continua a inspirar artistas e pensadores ao redor do mundo. A ênfase na liberdade criativa, na exploração do inconsciente e na rejeição das normas estabelecidas ressoam fortemente em uma era de rápidas mudanças tecnológicas e sociais, lembrando-nos da importância da imaginação e da arte em desafiar nossa percepção da realidade. O surrealismo nos convida a continuar sonhando e a buscar o “maravilhoso” em um mundo cada vez mais racional e previsível.

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