Redação Culturize-se
A polêmica envolvendo a obra “Às vezes, quase parece que não estou usando aquela coroa de espinhos”, da artista pernambucana Elvira Freitas Lira, trouxe à tona questões sobre liberdade artística, representatividade e os limites institucionais no Brasil. A pintura, uma releitura do famoso quadro “A Última Ceia” de Leonardo da Vinci, foi inicialmente impedida de ser exibida na exposição “O que te faz olhar para o céu?”, em cartaz no Centro Cultural Correios no Rio de Janeiro.
Natural de Arcoverde, no Sertão de Pernambuco, Elvira criou uma versão da icônica cena bíblica que desafia as representações tradicionais. Em sua obra, os apóstolos são retratados como mulheres e pessoas negras, enquanto a figura central, Jesus Cristo, aparece como uma personagem feminina de pele escura, cabelos longos e com chagas nas mãos. Esta reinterpretação audaciosa gerou controvérsia e levantou debates sobre diversidade e inclusão na arte religiosa.
A artista, que tem um histórico de participações em exposições renomadas e foi indicada ao prêmio PIPA em 2024, expressou sua surpresa e desapontamento com a decisão inicial de excluir sua obra. Elvira argumentou que sua intenção não era causar polêmica, mas sim oferecer uma nova perspectiva sobre uma cena tantas vezes reproduzida na história da arte. Ela questionou por que sua versão, que apresenta uma maior diversidade, foi considerada ofensiva para uma instituição laica em um país que se declara laico.
O caso ganhou notoriedade após a artista compartilhar sua experiência nas redes sociais, impulsionada pela controvérsia em torno de uma paródia similar apresentada na abertura dos Jogos Olímpicos de Paris em 26 de julho. A situação chamou a atenção para as tensões existentes entre expressão artística contemporânea e expectativas institucionais conservadoras.
O curador da exposição, Rodrigo Franco, confirmou que a obra foi inicialmente excluída por “não estar em conformidade com as diretrizes internas” do Centro Cultural dos Correios. Ele relatou que a decisão veio após as imagens das obras serem enviadas para avaliação em Brasília, durante um processo de determinação da classificação indicativa de idade para a exposição.
A exclusão da obra gerou uma reação criativa por parte do curador, que decidiu expor uma moldura vazia no lugar onde a pintura deveria estar, mantendo os créditos da obra original. Esta decisão serviu como um comentário silencioso, mas poderoso, sobre a censura e a ausência forçada da peça.
Em resposta à crescente atenção midiática, os Correios emitiram uma nota afirmando que a obra não constava do catálogo original apresentado durante a análise inicial e aprovação do projeto da exposição. No entanto, a instituição declarou que, após reavaliar o assunto, decidiu providenciar a exibição da tela na mostra. Os Correios reafirmaram seu compromisso com a pluralidade e a inclusão, prometendo manter unidades culturais abertas à comunidade artística e promover uma programação eclética e democrática.
Contudo, a artista contestou esta versão, negando ter sido contatada pelos Correios para enviar a tela para a exposição. Elvira também afirmou que em nenhum momento foi mencionado que a obra teria sido recusada por problemas no catálogo. O curador Rodrigo Franco corroborou esta informação, dizendo que só foi informado sobre a reavaliação e a decisão de incluir a obra após o posicionamento da instituição ter sido publicado na mídia.
Este episódio levanta questões importantes sobre o papel das instituições culturais na promoção da diversidade e na proteção da liberdade artística. Também destaca as tensões que podem surgir quando obras de arte desafiam representações tradicionais, especialmente em contextos religiosos ou culturalmente sensíveis.
A controvérsia em torno da obra de Elvira Freitas Lira não é um caso isolado. Ela se insere em um contexto mais amplo de debates sobre representatividade na arte, especialmente quando se trata de reinterpretações de ícones culturais e religiosos. A decisão de retratar figuras bíblicas tradicionalmente representadas como homens brancos como mulheres e pessoas negras toca em questões profundas de identidade, história e poder na sociedade brasileira e global.
O desfecho aparentemente positivo, com a promessa de incluir a obra na exposição, demonstra o poder da visibilidade midiática e da pressão pública em influenciar decisões institucionais. No entanto, também levanta questões sobre a sinceridade e a profundidade do compromisso das instituições com a diversidade e a liberdade artística.
Para Elvira, cuja obra foi inspirada nas diversas representações religiosas de sua infância em Arcoverde, esta experiência foi uma mistura de frustração e oportunidade. Embora inicialmente chateada com a situação, ela encontrou apoio em sua comunidade e usou a plataforma para iniciar um diálogo mais amplo sobre arte, representação e inclusão.