Longa de Sam Taylor-Johnson evita os anseios da audiência e o lugar-comum das biografias redentoras. “Back to Black” foca em uma artista em constante litígio consigo mesma
Por Reinaldo Glioche
Não é a primeira vez que Sam Taylor-Johnson se debruça sobre um ícone inglês da música. Em 2009 ela lançou “O Garoto de Liverpool”, uma biografia de John Lennon fora do convencional. “Back to Black”, que empresta de uma das músicas mais célebres de Amy Winehouse seu título, é mais formalista, mas isso não significa que seja subserviente aos caprichos da audiência, da crítica ou mesmo à memória de sua biografada.
O roteiro de Matt Greenhalgh, que também assina o texto de “O Garoto de Liverpool”, não está interessado em enfileirar acontecimentos da vida de Amy, mas em tatear suas angústias e desejos. É um trabalho que ganha dimensão pelo inteligente uso da música, tanto de Amy como de outras figuras proeminentes do jazz e do soul. A trilha sonora é assinada por Nick Cave e Warren Ellis.
Johnson é humilde o suficiente para entender que a música é uma poderosa forma de expressão dos sentimentos e sentidos que almeja capturar, no filme e junto à audiência, e sagaz o bastante para confiar nesse expediente. Quando a faixa “Back to Black” surge lá pela metade do longa e a audiência observa uma frustrada e desesperançosa Amy Winehouse perambulando por Nova York, o fluxo de sentimentos e percepções nos congestiona.
Marisa Abela, que dá vida à cantora, já havia demonstrado talento na série “Industry” da HBO e aqui agarra seu primeiro grande papel com obstinação e esmero. Sua atuação navega pelo brilho e solar e pelo sombrio e desconsolo. É uma atuação que flui pelo turbilhão emocional de uma vida sempre no 220 e que reflete isso no aspecto físico. Abela é gentil na abordagem, mesmo nos momentos mais ásperos da trajetória da artista.
A realização não está interessada em absolver os pecados de Amy Winehouse – o que contraria os anseios de parcela do público – tampouco em encontrar culpados pelo flagelo da artista – e acerta ao evitar o cliché de culpar o pai, o ex-marido e a imprensa -, mas em entender as razões para que aquela mulher tão cheia de vida e talento vivesse em constante litígio consigo mesma.
A tese que o filme defende, que não é inédita, mas muito bem fundamentada, é de que Amy Winehouse precisava da dor para criar. A garota que estava decida a não ser uma Spice Girl precisava da tristeza, da insegurança aflorada, para viabilizar sua arte. Nesse sentido, a passagem em que ela culpa a felicidade conjugal por não estar compondo, o que descarrila um desentendimento com o então namorado Blake (Jack O´Connell) e uma posterior ruptura é sintomático. Embora muito sutil, esse momento, assim como outros, dão o tom de uma abordagem nada sensacionalista e muito tenra sobre como Amy jamais esteve em um bom lugar em termos de saúde mental.
O filme chega ao mundo em um momento em que artistas falam abertamente sobre saúde mental e que alguns avanços na questão já foram estabelecidos, mas não era esse o caso quando Amy Winehouse foi se decompondo aos olhos da opinião pública e o filme tem consciência disso. Ao não contaminar sua lente de observação, Taylor-Johnson acerta mais uma vez e, assim, honra o legado difuso, mas nem por isso menos cativante, de Amy Winehouse.