Longa que venceu a Palma de Ouro na edição 2023 do Festival de Cannes é, superficialmente, um drama de tribunal, mas “Anatomia de uma Queda” monta um palco para subjetividades sobre a objetividade dos fatos
Por Reinaldo Glioche
O longa de Justine Triet, vencedor da Palma de Ouro, tem muitas virtudes; a maior delas, talvez, seja sua capacidade de semear a dúvida a partir de cada nova certeza arregimentada. É um artifício narrativo, mas é, também, uma contingência mundana nesses tempos de pós-verdade. Em um dado momento, uma personagem orienta a outra em face de uma dúvida atroz: “quando não se tem elementos para dirimir uma dúvida, deve-se apenas escolher um dos lados. E tentar ficar em paz com a escolha.”
A orientação, com um pouco de escrutínio, ajuda a entender porque a formulação do direito moderno define que “in dubio pro reo”. E essa condição cerca toda a ação de “Anatomia de uma Queda”. A escritora Sandra (Sandra Hüller) é a principal suspeita da morte de seu marido Samuel, mas todas as provas são circunstanciais e, portanto, incapazes de determinar a autoria. Não obstante, a defesa encampa a tese de suicídio e é interessante observar como os fatos arrolados no julgamento substanciam tanto uma linha de narrativa como a outra.
Triet orquestra, portanto, mais do que um teatro de incertezas, um ensaio sobre as instabilidades da dúvida. Até a imagem pode ser questionada, com o devido rigor e método. Nesse sentido, expande-se o comentário até mesmo para o cinema. Devo acreditar no que vejo? O que vejo me manipula emocionalmente? A imagem, reconstituída ou narrada, me condiciona aos critérios do narrador?
As dúvidas estão por toda parte e, em certa medida, o filme também trata da necessidade de aprender a conviver com elas. Um processo não ileso a traumas e conflagrações. Mãe e filho, jogados em um pandemônio de emoções e possibilidades, precisam lidar com dúvidas que vão muito além da resolução do julgamento e a capacidade de projetar o futuro a partir da convulsão do presente responde por um dos acertos da direção de Triet, que aposta nos diálogos como tabernáculos do multiverso de tensões e cenários.
Culpa, renúncias, infidelidade e o estrangeirismo em uma relação conjugal são elementos a pendular um julgamento que Triet convida que sua audiência faça. As instabilidades das dúvidas dos personagens necessariamente precisam ser nossas. Nesse jogo de espelhos, “Anatomia de uma Queda” encontra sua perenidade.