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Em “A outra filha”, Annie Ernaux escava a própria pré-história familiar e os desdobramentos do luto

A francesa Annie Ernaux conta com imperturbável franqueza a descoberta de uma irmã que faleceu antes de seu nascimento e como essa tragédia impacta a forma como ela e os outros a vêem

Aline Viana

A autora francesa Annie Ernaux | Foto: Reprodução/Mubi

A editora Fósforo acaba de publicar mais uma obra-prima de Annie Ernaux, “A outra filha”. Nele, a autora resgata um episódio da infância, quando descobre que os pais haviam tido uma outra filha e jamais lhes contaram. Nessa obra de pouco mais de 60 páginas, sentimos o impacto que a história causou ao longo dos anos em Ernaux.

No final da década de 2000, a autora recebeu um convite da coleção francesa Les Affranchis para escrever uma carta nunca escrita. A partir daí, Ernaux revela quando, aos dez anos, entreouve a mãe comentar, com uma cliente da mercearia da família, que havia tido uma outra filha antes da guerra, anos antes de Annie nascer. E essa carta é o que o leitor irá atravessar com o coração nas mãos no decorrer do livro. 

“ela diz, meu marido ficou louco quando te encontrou morta ao voltar do trabalho nas refinarias de Port-Jerôme (…)

No fim ela diz, referindo-se a você, ela era mais boazinha do que aquela ali.

Aquela ali sou eu”

Annie Ernaux. “A outra filha”

Essa outra irmã foi um segredo de família ao longo de toda a vida dos pais de Annie. Em nenhum momento, eles lhe contaram a respeito, houve até parentes mais descuidados que deixaram escapar eventualmente, mas jamais a autora questionou os pais sobre a primogênita.

A criança havia vivido até os seis anos e perecido diante de uma epidemia de difteria. Meses depois daquela morte, a França implementaria a vacinação obrigatória. Nesses tempos pós-Covid, esse tipo de acontecimento nos soa familiar.

O trauma, como podem imaginar, estava instalado. Se antes Annie, vivia o esplendor de ser filha única de pais amantíssimos, ela descobre que houve outra.  Que sua vida existiu porque outra se perdera.

“Eu era tola no sentido popular, de humilhada. Eu tinha vivido uma ilusão. Não era filha única. Havia outra pessoa, que tinha surgido do nada. Todo o amor que eu julgava receber era, então, falso.”

Annie Ernaux. “A outra filha”

Se antes dessa descoberta, a pequena Annie já não poderia ser descrita como boazinha (“atrevida, trapaceira, gulosa, senhorita sabe-tudo, irritante, com o diabo no corpo”), ela se depara com uma certa sensação de não pertencimento e vai, aos poucos, assumindo a vocação de não se encaixar até romper com as expectativas paternas. Sob esse ponto de vista, seria a própria autora “a outra filha”.

Ernaux escava a própria pré-história (pois tudo não nos parece incrivelmente distante e até fantástico antes de nosso nascimento?), como eram os pais dela antes daquela tragédia e da guerra – como seria aquela família sem ela? Os pais não tinham condições de  prover uma boa qualidade de vida a duas crianças, portanto, foi preciso a morte da primeira para que Annie existisse. 

Ela se questiona sobre o luto dos pais e como essa ausência, presente nas entrelinhas (uma foto antiga que ela supunha ser de si; a mãe em um teste para avaliar a perda de memória afirma ter tido “duas filhas”, as vezes em que os pais perguntavam um ao outro se haviam ido ao cemitério etc.), a impactou; e sobre como ela se sente diante dessa irmã que nunca chegou a ser “mais velha”. 

Imaginar como seria um mundo sem nós e qual o sentido da vida são dois desafios que Ernaux se propõe neste “A outra filha”. O universo alternativo existiu e se desfez como espuma. 

Mesmo diante de tanta dor e mágoa, a autora mantém a escrita elegante, direta e afiada.  A cada livro que chega ao mercado brasileiro, fica mais evidente porque o Nobel premiou a obra de Ernaux. 

Serviço
A outra filha
Annie Ernaux, tradução de Marília Garcia

Editora Fósforo, 64 páginas

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Financiamento coletivo para clássico antiescravagista da literatura cubana vai até 05/10

A editora Pinard está com mais uma campanha de financiamento coletivo aberta, desta vez a meta é lançar o romance “Sab”, escrito pela autora cubana Gertrudis Gómez de Avellaneda (1814-1873) . Quando o livro foi lançado em 1841, ele foi proibido e considerado “subversivo” por abordar a realidade dos 400 mil escravizados que então viviam na ilha caribenha.

No romance, o escravo Sab se apaixona pela filha de seu senhor, Carlota. Ela desconhece os sentimentos do escravizado, embora seja contra o regime escravagista. Logo, entra em cena o comerciante ganancioso Enrique Otway, que pretende casar com a moça com vistas no dote. Pouco depois, Carlota virá a se arrepender de ter assumido o compromisso. 

Sab” inova ao trazer o romantismo do século 19 combinado à questões sobre raça, cor, embranquecimento”, escravidão e feminismo. Não espanta que tenha sido proibido. 

Serviço

Sab

Gertrudis Gómez de Avellaneda (1814-1873)Como adquirir: Sab de Gertrudis Gómez de Avellaneda (catarse.me) – a partir de R$ 90

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