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A cidade como personagem

O colunista Fabio Montanari propõe analisar a arquitetura e urbanismo na cultura pop para entender a obra (e vice-versa)

Fábio Montanari

A cidade surge com os primeiros assentamentos humanos, marca um fato importante da nossa história, quando deixamos de ser nômades e criamos raízes, é o lar da sociedade. Entender a cidade é entender seus habitantes, enxergar seus signos é olhar-se no espelho. E analisar a representação da cidade na ficção, além de prazeroso (pelo menos para mim) é entender como se relaciona todos esses signos para criar um sentido maior.

“Gattaca” – cidade como ordem

O filme neo noir futurista “Gattaca: A Experiência Genética” (Dir. Andrew Niccol, EUA, 1997, Ficção científica/Drama/Suspense, 106 min, 14 anos), que foi considerado pela NASA o mais preciso cientificamente, mostra um futuro onde é possível manipular geneticamente os embriões para criar indivíduos ideais, assim,  as pessoas que foram concebidas biologicamente são consideradas inválidas.

 O edifício Marin County Civic Center de Frank Lloyd Wright, inóspito, frio e impessoal | Foto: Divulgação

Nesse futuro não é de se espantar que tudo pareça padronizado e ordenado, não há chances para o acaso. Os cabelos, a altura dos indivíduos, a organização das mesas no ambiente de trabalho, vestimentas, tudo segue uma ordem, dentro de uma sociedade minimalista, asséptica e impessoal. A Arquitetura segue a mesma toada. O edifício Marin County Civic Center do arquiteto Frank Lloyd Wright, na Califórnia, foi utilizado como cenário para a sede do Gattaca Aerospace Corporation onde o herói trabalha, edifício que também foi cenário de outro filme de tema parecido, “THX1138” de George Lucas.

Em “Gattaca”, o prédio perde o seu rosa característico e ganha um tom de concreto não para representar a força que esse material costuma simbolizar, mas o caráter asséptico, frio e artificial dele. As linhas repetidas dos arcos,  pilares e linhas horizontais, bem como a vastidão, são reforçadas pelos enquadramentos para dar um ar ainda mais impessoal, minimalista e monótono para o ambiente e sociedade.

Laboratório, Salas e Administração da Universidade Politécnica da California, do arquiteto Antoine Predock

Outro edifício icônico que aparece no filme é o edifício de Laboratório, Salas e Administração da Universidade Politécnica da California, do arquiteto Antoine Predock, que no filme é a residência do protagonista. Um edifício brutalista e minimalista que dificilmente veríamos como uma habitação, mas em um universo onde toda sociedade é tão ordenada, até o lar, considerado o ambiente mais íntimo, um laboratório.

É interessante notar que em “Gattaca” não vemos a cidade como um todo, mas edifícios isolados e distantes, sempre sem entorno e inóspitos, não há nada que os conecte a não ser ruas vazias. Uma sociedade tão impessoal que não há vislumbre do que faz uma cidade ser uma cidade: pessoas.

“Robocop” – cidade como mercadoria

“Robocop – O Policial do Futuro” (dir. Paul Verhoeven, EUA, 1987, Ficção científica/Ação, 102min, 14 anos), talvez seja a melhor sátira dos anos Reagan já feita. Na película de Paul Verhoeven tudo parece uma caricatura do que era mais valorizado no cinema de ação dos anos 1980: nosso herói brucutu robótico (literalmente), vilões caricatos, frases de efeito, e muita violência.

Todo esse pastiche, porém, não é gratuito e esconde, talvez, a maior crítica ao neoliberalismo visto num filme de Hollywood. Logo no começo vemos a polícia aspirando fazer greve pois está prestes a ser privatizada; os grandes planos para cidade são feitos entre executivos de uma grande corporação que querem lucro e subir na carreira antes de tudo e, por fim, temos um grande projeto de cidade privada de Delta City (conceito muito inovador para a época do filme), operada pela mesma corporação dona da polícia da Velha Detroit. Ou seja, uma distopia ultra capitalista, onde qualquer coisa pode ser mercadoria.

Detroit não foi escolhida por acaso, pérola do Centro-Oeste americano, berço da enorme indústria automobilística, vista nos anos 1950 como a cidade mais futurística da América, viu a partir dos anos 1970, com a crise do petróleo, uma rápida desintrustrialização, perdendo quase um terço de sua população em 30 anos. Um símbolo do fracasso do ideal americano dos anos 1950. (A cidade iria sofrer ainda mais nos anos seguintes ao filme, atualmente é quase uma cidade fantasma com uma fração da população do que já teve um dia).

Outdoor de Delta City, promessa de uma utopia capitalista dentro de uma distopia | Foto: Divulgação

No filme, a OCP, conglomerado que tem como sede um imponente e forte edifício brutalista de concreto, destoa dos edifícios envidraçados corporativos comuns, costumamos ver o brutalismo como arquitetura institucional ou governamental, símbolo de poder e estabilidade, aqui os poderes se invertem, a prefeitura é apresentada simplória e fraca, a ponto de o herói quebrar as paredes como papel em um determinado momento do filme. Fica claro que nessa distopia o poder emana das empresas. Delta City, a cidade que a OCP está construindo é apresentada para o espectador a primeira vez como uma maquete, para ser logo destruída por um executivo que cai morto fuzilado, e posteriormente aparece num outdoor num beco escuro da Velha Detroit onde uma mulher está prestes a ser atacada. No universo do filme, Delta CIty é um paraíso capitalista forjado com violência, uma mercadoria a ser vendida em painéis publicitários, não diferente dos anúncios de lanches de fast food, onde as fotos publicitárias não contam toda a história.

“Akira” – cidade como câncer

Na abertura de “Akira” (dir. Katsuhiro Ôtomo, Japão, 1988, Animação/Ficção científica/Ação, 124min, 14 anos), anime cyberpunk oitentista, temos  uma vista aérea de Tóquio, uma grande explosão que a devasta, uma transição ao que parece tecido humanos, ou órgãos, ou até mesmo um feto em um útero, que numa transição se mostra na verdade como a cidade de Neo-Tóquio 30 anos depois. Essa cena rápida que precede o título do filme pode passar despercebida, mas pode ser entendida como uma síntese do filme e do Japão no período.

Abertura de “Akira”

O país passou pela fase do milagre econômico do pós-guerra, que durou mais de quarenta anos. Em 1988, ano do filme, sabia-se que esse crescimento não era mais sustentável. Entre 1950 e 1990, a Grande Tóquio triplicou sua população. A cidade que sobreviveu ao grande terremoto de 1923 e aos bombardeios da segunda guerra, parecia que agora iria explodir pelo aumento demográfico desgovernado. No meio desse crescimento, a identidade urbana japonesa foi esmagada por uma arquitetura internacional de torres envidraçadas, viadutos, letreiros neon e galpões; mais do que uma cidade, Tóquio havia se transformado numa grande máquina, fria e desumana, mas que cresce e se replica como um câncer.

Em “Akira”, é assim que Neo-Tóquio é retratada, um amalgama de arquitetura, máquina e corpo; seus prédios ora parecem motores, ora artérias que se fundem. No desfecho do filme, o personagem principal, Tetsuo, sucumbe quase como uma personificação da cidade e do Japão, uma fusão de máquina, concreto e corpo, que cresce como um câncer até o colapso total. O milagre econômico japonês acabou em 1991 com uma terrível crise, e desde então, a população de Tóquio vem diminuindo.

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