Por Ingrid Hötte Ambrogi*
Os museus contemporâneos têm múltiplas formas e configurações. Há, hoje, a representação de diferentes segmentos sociais que buscam fazer referência às memórias.
A partir da reinvindicação de grupos sociais na esfera museológica, das discussões que permearam a área acadêmica e por meio de políticas públicas derivadas dessas iniciativas, caminha-se na busca por garantir representações mais diversas e inclusivas nos acervos de museus e entidades de salvaguarda de nossa memória.
Propostas mais arrojadas na maneira de expor, como a de combinar coleções mais antigas com objetos mais contemporâneos e antagonizar “verdades” instituídas, estão criando atrito e permitem com que o visitante de uma exposição saia do papel de mero espectador.
A arquiteta Lina Bo Bardi, por exemplo, ao conceber o Centro Cultural SESC-Pompéia, em São Paulo, pediu a um operário da obra que esculpisse peças em madeira e as colocou em uma pequena vitrine no corredor central de entrada. Essa atitude gerou um atrito ao aproximar universos separados pela concepção tradicional museológica, que, neste caso, foi desconstruída para se criar um espaço de memórias de todos, da arquiteta de renome internacional aos operários, sempre invisibilizados em obras que também são suas.
Hoje, os museus buscam mudar a postura dos visitantes nas exposições. Para isso, esses espaços trabalham para atribuir protagonismo aos espectadores, tornando-os coparticipantes, deslocando sentidos atribuídos às obras e criando dilemas, quando, por exemplo, questionam o quadro Independência ou Morte, de Pedro Américo, exposto no Museu Paulista, e levantam reflexões como: se estavam realizando uma viagem cansativa, como explicar o tipo de roupa? Não havia escravos nesta viagem? Diante disso, é preciso colocar a representação ufanista da independência em seu lugar e indagar os discursos instituídos e propagados como únicos.
Igualmente, o espaço museológico ganha novos contornos. Há museus com grandes acervos, que apresentam exposições em formatos inovadores e fazem amplo uso dos aparatos tecnológicos, e existem também os espaços que nascem dentro de comunidades, com pequenos acervos, mostrando suas memórias e histórias, constituindo-se como museus comunitários, uma importante contribuição para reconfigurar a memória local.
O meio expográfico pode ser igualmente diverso. Uma iniciativa inovadora, denominada por Museu de Rua, ocorreu em 1978 em São Paulo. Foram exposições que divulgavam o trabalho do fotógrafo Militão Augusto de Azevedo, que retratava a cidade de São Paulo arcaica. Por outro lado, as fotografias de Aurélio Becherini mostravam a Belle Époque paulistana em painéis distribuídos em locais icônicos da região central da cidade, com pequenos textos explicativos e capazes de provocar os transeuntes a pensar sobre as modificações feitas na capital, em especial, pelas obras do metrô.
O Museu de Rua foi criado para o espaço público e, em virtude da não disponibilidade de ambientes para exposições, trouxe a inovação dos painéis expográficos, que dispunham as fotografias no mesmo plano em que foram tiradas, gerando, ao pedestre, três camadas comparativas: a cidade colonial de Militão, a cidade afrancesada de Becherini e a cidade do final dos anos de 1970, que apresentava muitas mudanças com a demolição de marcos importantes.
Quando as coleções são constituídas por seus marcos históricos, apagamentos, memórias materiais e imateriais, a cidade pode se tornar uma grande sala expositiva, já que ali estão as memórias de seus habitantes ou visitantes, uma relação com o vivido, com a atribuição de sentidos, a trajetória de vida de cada cidadão ao se identificar com um endereço que já habitou, com um trajeto realizado ou com seus marcos particulares.
Esses mesmos espaços ganham memórias coletivas ao promoverem ações que tornam um lugar seu ponto de referência e existência, como, por exemplo, a sede da escola de Samba Vai-Vai, no Bixiga, bairro próximo ao centro da cidade de São Paulo, que, ao ser desalojada, teve sua atividade cultural prejudicada. Pode haver também a sobreposição de sentidos, neste mesmo caso, quando o local próximo à sede da escola de samba foi escavado e encontraram vestígios de um quilombo urbano que existiu e faz parte da história daquele território.
Podemos citar da mesma forma o Cais do Valongo, na cidade do Rio de Janeiro, entre outros tantos exemplos que fazem parte dos apagamentos de memórias e da história de segmentos sociais que não foram considerados ao longo de sua existência para serem memoráveis.
Portanto, a função do museu hoje é agregar memórias, mostrar dissonâncias e confluências que provoquem o visitante a pensar sobre sentidos naturalizados e seus antagonismos. Precisamos, de fato, ressignificar nossa memória e nossa história. Assim, museus têm consultado grupos de diferentes etnias indígenas para reorganizar seus acervos. Os artefatos dos povos originários só podem ser expostos à medida em que o significado de cada objeto possa ser compreendido a partir da sua cultura, para que foi feito e qual era sua destinação. Dessa maneira, cada objeto agrega sua história e descortina a cultura de onde veio.
A diversidade ganha foco nos museus contemporâneos. Além de ressignificar a dimensão histórica de um único ponto de vista, o antagonismo é bem-vindo para dar sentido às memórias múltiplas que são mais próximas da realidade vivida. Esse é o papel dos museus hoje.
*Ingrid Hötte Ambrogi é professora do Programa de pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie