Filme estrelado por Anna Kendrick estreou no Prime Video e mostra os desdobramentos psicológicos de uma relação abusiva
Por Gabriela Mendonça
Quem lê a sinopse de “Querida Alice” antes de ver o filme já tem uma pista de que se trata de uma narrativa sobre relacionamento abusivo, mas quem começa a assistir sem informação prévia pode achar que é um thriller. O filme dirigido por Mary Nighy, que estreou no Prime Video na última semana, utiliza das características do suspense para indicar o medo constante em que vive a protagonista Alice (Anna Kendrick).
A história começa em um encontro no bar com as amigas Tess (Kaniehtiio Horn) e Sophie (Wunmi Mosaku), e logo percebemos que ela está incomodada. O celular não para de tocar e ela acaba indo ao banheiro tirar fotos sensuais para o namorado, Simon (Charlie Carrick).
A mera ideia de que o garçom pode estar interessado nela já a apavora. Depois de alguns drinks, ela volta para casa, prometendo para as amigas que vai tentar acompanhá-las em uma viagem para celebrar o aniversário de Tess. Ela consegue, mas apenas mentindo sobre seu compromisso para Simon.
As três amigas pegam a estrada e partem para uma cabana e, assim que chegam, descobrem que uma garota desapareceu nas redondezas. O clima de suspense permanece, em parte pelo desaparecimento, mas principalmente pelos traumas que Alice recusa a enfrentar.
Falar sobre abuso não é fácil, e mostrar o tema de forma clara quando não há agressão física é um desafio. Será que o que ele faz é tão grave assim? Para evitar esse tipo de questionamento e deixar claro que abuso pode vir de homens que se julgam amorosos, Nighy usa recursos que beiram o sobrenatural.
Simon é uma voz constante na cabeça de Alice, uma visão presente em todos os seus movimentos. O que ele vai achar? De que formas vai maltratá-la ao saber que ela bebeu com as amigas em um bar? Pulou no lago? Cantou no meio da rua? E se ela não arrumar o cabelo perfeitamente e passar maquiagem? Ele é um fantasma, presente em todos os momentos, sufocando-a mesmo não estando lá.
“Às vezes eu acho que ele consegue ler a minha mente. E se ele consegue fazer isso, não existe nenhum lugar do mundo onde eu possa ficar sozinha”, diz Alice. Quando não atormenta seus pensamentos, ele acompanha seus passos constantemente por mensagens no celular. É justamente quando Alice se vê longe do aparelho, escondido por Tess, que ela consegue emergir na superfície e respirar.
Até então ela aproveita a viagem distante das amigas: não entra na jacuzzi, não vai ao passeio para a ilha, não acompanha a amiga em uma música. Ela está lá, mas não consegue de fato participar. Afinal, o que Simon diria? As visões e flashbacks das coisas que ele diz deixam claro que ele tenta afastá-la das amigas. E ela quase acredita. Mas Tess e Sophie não, e por isso elas continuam insistindo em trazer a amiga de volta, em puxá-la de baixo d’água.
Lidar com o abuso de uma amiga não é fácil. Falar abertamente sobre o que vê e o que sente causa, na maioria das vezes, um ressentimento. Quando uma pessoa está passando por esse tipo de situação tem dificuldade em aceitar o abuso, e a negação pode acabar afastando de vez quem, de uma forma ou de outra, tenta ajudar. “Onde você vai por essa vergonha?” Alice se pergunta quando finalmente entende que precisa se livrar dessa relação. “Divide com a gente”, diz Tess.
O afastamento físico, da casa que divide com ele e do celular, oferece finalmente a perspectiva que Alice precisa. Mas ainda assim, quando ele descobre que ela está com as amigas e aparece de surpresa, Alice logo retorna aos velhos hábitos: não come, se maquia e arruma o cabelo, tentando parecer perfeita.
Essas pequenas mudanças, detalhes físicos sutis que mostram o pavor constante de Alice são muito bem interpretados por Anna Kendrick, em um dos melhores papéis de sua carreira. Sua Alice está quase o tempo todo à beira de um ataque de nervos, mas nunca chega a perder o controle, pois “não pode errar de novo”. É uma interpretação minuciosa, que transmite mesmo sem falar nada, o desespero constante.
A história é agridoce: por mais feliz que a gente fique por saber que Alice tem uma rede de apoio, a forma como o abuso é retratado é comum demais, fácil de identificar em uma amiga, familiar, colega de trabalho. Mas se o cinema tem o poder de retratar nossa realidade, “Querida Alice” tem coragem de mostrar uma mais comum do que se gostaria de admitir.