Por Gabriela Mendonça
Em 1962 entrou em vigor no Brasil o Estatuto da Mulher Casada, que concedia “benefícios” para as mulheres que passaram a maior parte do século XX sendo consideradas “relativamente incapazes” para exercer a vida civil.
Isso significava que, antes dessa data, as mulheres não podiam fazer coisas como receber herança, assinar um cheque ou firmar um contrato sem a autorização de um responsável (pai ou marido). Também eram eles que determinavam se, quando e onde a esposa trabalharia, e ficava a seu cargo decidir caso a quisessem em casa.
Em 62 isso começou a mudar, e as mulheres puderam, por exemplo, decidir sozinhas se trabalhariam ou não. De lá até os dias de hoje, muito evoluiu. As mulheres se tornaram CEOs, donas de negócios milionários, ocuparam cargos em multinacionais e se tornaram referências em seus campos de atuação.
Mas, para cada uma que alcança esses patamares, quase o dobro de homens ocupa a mesma posição. Essas “pequenas vitórias” acompanham a vida corporativa das mulheres até hoje e, em 2023, ainda estamos debatendo sobre seu espaço no mercado de trabalho.
A taxa de participação das mulheres na força de trabalho, segundo o IBGE, é quase 20% menor que a masculina, e seu rendimento representa 77,7% dos salários dos homens. Elas representam apenas 37% dos cargos gerenciais e 16% dos cargos de vereadores eleitos em 2020. Hoje, a mulher não precisa mais da autorização do marido para trabalhar, mas precisa de oportunidades, e um espaço onde se sinta segura para se desenvolver.
Atentas e fortes
O meio cultural parece seguir um caminho diferente do meio corporativo. Afinal, os movimentos culturais mais relevantes que aconteceram no Brasil contaram com a participação de mulheres.
Tarsila do Amaral é um dos nomes mais celebrados no modernismo brasileiro, Gal permaneceu atenta e forte quando a Tropicália despontou, e Clarice continua sendo um dos principais expoentes da literatura do país.
Mas para cada mulher que se destaca no cenário cultural, os homens aparecem em maior número.
“Eu tinha o hábito de monitorar os lançamentos mensais das maiores editoras do país e contar quantos livros eram escritos por homens e quantos eram escritos por mulheres. A diferença era absurda, se vinte livros eram publicados, por exemplo, apenas três tinham mulheres como autoras, sendo a maioria de outros países”, conta a escritora, cordelista e poetisa Jarid Arraes.
Aos 32 anos, a cearense de Juazeiro do Norte já tem quatro livros publicados entre prosa, poesia, contos e cordel, gênero onde já publicou mais de 70 títulos. Jarid conta que começou a escrever cordel para seguir a tradição de sua família paterna, até então levada apenas por homens. “Eu também queria trazer uma perspectiva que me faltou enquanto eu crescia lendo literatura de cordel, já que mulheres protagonistas eram raríssimas e, na maioria das vezes, o machismo das histórias e textos era escancarado”, explica.
Machismo não-velado
Disparidades salariais, falta de oportunidade de crescimento e a inexistência de políticas de gêneros no meio corporativo contribuem para um machismo velado, que segue priorizando homens.
Segundo um levantamento feito pela Aberje (Associação Brasileira de Comunicação Empresarial) em 2022, 50% das entrevistadas declararam que o que mais as impede de chegar ao topo da carreira é a subestimação de suas capacidades, que faz com que não sejam consideradas para novos cargos. Outras 47% acreditam que o impeditivo é o fato de expressarem suas opiniões e serem julgadas mais duramente por isso.
Mas existe também o lado não-velado, na forma de assédio – verbal ou físico – que está longe de ser resolvido. A certeza de que em algum momento vai passar por discriminação de gênero na carreira permeia a vida de todas as mulheres. O levantamento da Aberje aponta que 72% das entrevistadas já enfrentaram assédio no ambiente de trabalho.
“Escuto falas muito machistas e desdenhosas de alguns homens cordelistas, parece ser muito irritante para eles que eu fale sobre o machismo no meio literário – e no meio do cordel”, revela Jarid.
Essa discriminação, em sua visão, também a impede de ocupar espaços. “Os convites para fazer parte de grupos ou em eventos como bienais não existem. Já participei de eventos em que homens cordelistas foram explicitamente rudes e machistas, todos viram”, completa.
Donos do mercado
“É como se você tivesse que ficar o tempo todo tentando provar alguma coisa”, explica a cineasta Kelly Castilho. Com quase 30 anos de carreira no mercado publicitário e audiovisual, Kelly já passou por algumas das maiores produtoras do país, incluindo a O2 Filmes, onde iniciou a carreira, Rede Globo, TV Cultura, Eyeworks Cuatro Cabezas e KondZilla, onde dirigiu o documentário “Mães do Brasil”, em parceria com a Globo.
Kelly começou como assistente, e foi abrindo seu próprio caminho, primeiro como diretora de arte, e em seguida como cineasta. Para ela, em cada etapa foi necessário provar o quanto pode e o quanto tem talento.
Ela conta que a passagem por tantas produtoras deixou claro que “os homens sempre foram os donos do mercado”. Mesmo na publicidade, eram eles os responsáveis pelas principais marcas. “Mulheres não faziam filmes de cerveja, de carro”, comenta. Um levantamento de 2020 com agências de publicidade aponta que as mulheres ocupam apenas 25% dos cargos de liderança no setor criativo, e 44% no comando geral, ou seja, o cenário pode até estar mudando, mas ainda segue desigual.
Abrindo caminhos
“O que você quer é só uma oportunidade”, aponta Kelly. Em sua carreira, foi a presença de uma mulher que conduziu seu olhar para o cinema. No começo dos anos 1990, o Brasil enfrentava uma de suas piores fases na produção cinematográfica, e foi “Carlota Joaquina, princesa do Brazil”, de Carla Camurati, que começou a mudar esse cenário. “Peguei esse filme como referência de cinema nacional”, conta Kelly.
Para ela, mudar esse contexto e criar um ambiente mais igualitário exige que os profissionais, principalmente quem está na ativa há muitos anos, enxerguem fora da caixa. “Você fica acostumado a trabalhar com tais pessoas, são sempre aquelas. E muita gente acaba não mudando por que funciona, são amigos, gostam de trabalhar. Para quem está a muito tempo é difícil mexer”, comenta.
Esse círculo fechado se torna um desafio para as mulheres que querem furar a bolha, e muitas vezes o caminho é mais longo. “Percebi que o mercado literário e os eventos literários eram muito fechados para quem já tinha os contatos certos, o nome certo, a origem certa, o gênero certo e também era da região certa do país. Ou seja, percebi que eu estava fora de várias categorias. Então fiz um caminho pouco tradicional”, explica Jarid.
A solução da escritora foi usar as ferramentas que tinha disponível, e recorrer às redes sociais para contar sua história e falar diretamente com os leitores. Foi essa relação direta que permitiu que ela finalmente ocupasse os espaços que lhe foram negados. “Os eventos e o mercado não podiam mais me ignorar. Foi aí que as editoras que me rejeitaram antes apareceram de volta desejando me publicar e então comecei a receber muitos convites para eventos”, comenta.
Elas por elas
As plataformas digitais se tornaram grandes aliadas no combate a essa desigualdade de gênero no setor cultural. É através de sites, grupos no Facebook, e outras ferramentas on-line que o gênero feminino busca se conectar, trocar experiências e encontrar talentos.
A More Grls, por exemplo, surgiu em 2018 a partir do descontentamento das publicitárias Camila Moletta e Laura Florence. As duas desenvolveram a start-up com o intuito de promover mais mulheres nos meios criativos, furando a tal bolha e desenvolvendo uma rede de talentos femininos.
A Empatia Criativa tem um papel similar, e através de grupos no WhatsApp e Telegram, também busca conectar mulheres que atuam no mercado da comunicação com novas vagas.
Outros projetos também buscam destacar a participação feminina em espaços ocupados principalmente por homens, como no meio musical. É o caso do Womens Music Awards, criado em 2017 para celebrar as mulheres que se destacaram no ano. Dividida em três categorias, a premiação abrange voto popular, técnico e homenageadas pelo conjunto da obra.
Vencedoras incluem expoentes da música como Tasha e Tacie e Marina Senna, mas também as profissionais que atuam por trás do som, como compositoras, produtoras, instrumentistas e jornalistas musicais.
Kelly também participa de uma iniciativa que visa ampliar a liderança feminina no audiovisual, o “Mais Mulheres”. Ao lado de outros nomes de destaque no cenário, como Debora Ivanov, Laís Bodanzky e Tata Amaral, ela busca maneiras de aumentar a participação de mulheres na indústria cinematográfica.
Na literatura, Jarid conduz um projeto desenhado para elevar o trabalho de escritoras. O Clube De Escrita para Mulheres foi criado em 2015, depois da publicação de seu primeiro livro. “Me sentia sozinha e percebia que muitas escritoras independentes, como eu, enfrentavam o machismo do mundo literário”, comenta.
Jarid diz ainda que, desde a primeira reunião do grupo, que acontece mensalmente em espaços públicos em São Paulo, ouve de outras mulheres que elas sentem vergonha e medo de compartilhar o que escrevem. “O Clube tem o papel de ser não apenas um encontro de escrita em grupo, mas de troca, de apoio entre mulheres, e muitas coisas incríveis se originam nele e ganham o mundo. Diversas autoras publicaram seus primeiros livros após iniciarem e se envolverem com o Clube, porque é uma rede de encorajamento que funciona, e é emocionante acompanhar cada transformação”, conclui.
São elas por elas abrindo caminho e destacando o talento femino no mercado cultural. Como Kelly falou, é uma questão de oportunidade, que as mulheres têm se dado para furar essa bolha e transformar o cenário.