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De correções no ‘BBB 23’ ao pronome neutro: as camadas da língua portuguesa

Em um debate atemporal sobre formas corretas de falar e escrever, o idioma português não é o mesmo para todo mundo

Por Beatriz França

Crescemos aprendendo cada regra da língua portuguesa. A diferença de ‘mas’ e ‘mais’, onde coloca a vírgula e as tantas variações dos ‘porquês’. Passamos por reforma ortográfica, sendo a última de 2016, mas constantemente novas palavras ou sinônimos surgem no nosso idioma. Tudo isso vem acompanhado de um receio de errar ou acabar sendo corrigido na frente de todos.

Mas o que muitos esquecem é que cada estado tem suas gírias, costumes e formas de falar, afinal, estamos em um País com 26 estados e o Distrito Federal e mais de 200 milhões de habitantes, segundo a prévia do IBGE divulgada em dezembro de 2022. 

Recentemente no Big Brother Brasil 23 a participante Larissa foi corrigida diversas vezes por errar algumas palavras, como o uso de ‘menas’ ao invés de ‘menos’ e ‘truce’ ao invés de ‘trouxe’. A sister deixou claro seu constrangimento e desabafou com outros participantes do reality que estava se sentindo “burra e insegura”. 

No ‘BBB 23’, Larissa tem sido alvo de correções ao falar palavras consideradas ‘erradas’ pelos confinados | Crédito: Reprodução/ TV Globo

“Eu falo muitas palavras errado, mas é meu jeito e você consegue me entender. É uma coisa que ninguém nunca se incomodou, mas aqui comecei a me sentir burra, insegura e p*rra, ficava me magoando”, disse Larissa durante um desabafo com Domitila, também participante do BBB 23.

“Assim como a receita de um bolo não é o bolo, a gramática não é a língua.” O exemplo do professor Marcos Bagno, dito por Jorcemara Cardoso, Doutora em Linguística e idealizadora do projeto Empoderamento Linguístico, resume bem a discussão de preconceito linguístico.

Ao Culturize-se, ela explica que a questão de “nem pensar duas vezes antes de ‘corrigir’ o uso do português não tem vínculo com a linguística, mas sim com fatores sociais, políticos, culturais, ideológicos e econômicos que atravessam não só a língua como nós, falantes do idioma”.

Jorcemara Cardoso explica as nuanças da língua | Arquivo Pessoal

“A língua portuguesa, nessa discussão, ela deixa de ser entendida como conjunto de variedades. Na escola, o que é a língua como sinônimo de gramática e não de qualquer uma, mas sim da normativa, ou pior, a famosa ‘norma culta’. O problema é que enquanto a ‘norma culta’ for algo vivo e heterogêneo, a gramática normativa se produz a partir de uma visão relativamente artificial da língua que nem mesmo os gramáticos que a produzem utilizam 100%”, fala.

Para a Doutora e integrante do grupo de pesquisas LEEDIM e ImaGine, o caso da Larissa do BBB 23 é um ótimo exemplo para exemplificar o “jogo entre língua e manutenção de privilégios” no português. “Quais grupos sociais falam ou escrevem ‘menas’, ‘remdibol’, ‘truce’ na nossa sociedade? Será que o incômodo com o ‘erro de português’ é por ela [Larissa] ter nível superior ou o que incomoda e até assusta é o fato dos ‘erros’ aparecerem na fala de uma mulher cis, branca, do sul do Brasil?”, questiona.

Quando a participante do reality show da Globo é corrigida pelo companheiro de confinamento Cara de Sapato, em um dos episódios, ele justifica a correção como se a personal trainer tivesse pedido esse alerta aos brothers. Mas, em nenhum momento, ela teria pedido para alguém da casa corrigir suas falas. “A seletividade do que vai circular como ‘erro’ é um indício de que o preconceito linguístico não é tão linguístico assim”, fala.

A língua portuguesa é elitista?

Entre tantas regras, formas de falar e as novidades em torno do nosso idioma é possível acreditar que, talvez, saber cada detalhe da nossa língua nativa seja um privilégio apenas para alguns. Mas não é isso que Jorcemara Cardoso acha. “O elitismo, preconceito linguístico e social, se manifestam na língua quando as falsas correlações (gramática – norma culta) são usadas para manter privilégios de grupos da sociedade”, fala.

Mariana Teixeira, gerente editorial da Editora Telha e Doutora em Literatura Comparada pela UFF, explica que pensar na língua portuguesa como algo elitista tem a ver “exatamente com a dificuldade que tivemos e temos de enxergar nossa língua como a língua portuguesa do Brasil”. 

Mariana Lima fala sobre o elitismo na língua | Divulgação

“Mesmo após a independência política no início do século XIX, demoramos um século para trazer a literatura brasileira nos manuais de alfabetização e letramento. Isso foi um reflexo da resistência em se reconhecer no nosso português enquanto sistema linguístico com fenômenos próprios e não apenas como um dialeto da variedade lusitana”.

O pronome neutro: ajuda ou atrapalha?

Quantas vezes você já se deparou com ‘menine’, ‘galere’, ‘elx’ em alguma publicação nas redes sociais? O uso do pronome neutro tem ganhado cada vez mais espaço, inclusive as Universidades discutem a permissão de usar ou não a linguagem neutra nas provas de redação.

Há quem aceite e quem condene essa ‘novidade’ do idioma, mas Jorcemara Cardoso explica que o argumento de que “não existe ‘todes’ na gramática ou língua-padrão não se sustenta porque a gramática não é um livro transcendental, que se autoproduz e se autorregula, a gramática é um conceito em disputa que pode servir, entre outras coisas, para estigmatizar ou acolher os usos da língua. A própria gramática muda “. 

Muito do debate do pronome neutro ‘ajudar ou dificultar’ começou quando pessoas, que não concordam com o uso, questionaram como deficientes visuais, por exemplo, entenderiam a publicação que optou por usar ‘menine’ e não ‘menina ou menino’. Lucas Riehl, produtor editorial da Editora Telha e Doutorando em Linguagem pela UFF, explica que a sociedade precisa superar alguns pontos no que “diz respeito ao funcionamento da linguagem neutra”.

Lucas Riehl | Divulgação

“Grande parte das pessoas que trazem esse discurso só lembrou agora que deficientes visuais e pessoas com autismo, por exemplo, devem ter acesso pleno à cidadania. Isso acaba soando de uma forma bem desonesta. Hoje, o grande problema da discussão sobre pronome neutro é que a resistência social a quem está demandando essa pauta é muito maior do que a abertura ao diálogo e reconhecimento da legitimidade”, fala.

Mariana Teixeira, gerente editorial da Editora Telha, completa: “Acho que ainda estamos longe de um modelo ideal para a linguagem neutra, principalmente porque estamos muito mais preocupados com a língua escrita do que com a língua falada, e isso provoca um recorte social no alcance que precisa ser vencido. É algo cujo debate precisa ser enriquecido cada vez mais, e não ignorado”. 

“Se os pronomes neutros vão se configurar como normas de uso em diferentes espaços, só o tempo dirá. E a língua é assim, um lugar de acordos e batalhas. Agora o que não se pode acolher como ‘normal’ é o que vem sendo feito, a tentativa de proibição e extinção do uso, de forma legislativa, como vemos em mais de 40 projetos, em todas as regiões do Brasil”, conclui Jorcemara Cardoso.

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