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Pruitt-Igoe e a arquitetura do fim

Fábio Montanari

Em 1982, um dos filmes mais espetaculares já feito foi lançado no cinema, “Koyaanisqatsi” (em língua Hopi significa, em uma tradução livre, “vida fora de equilíbrio”) de Godfrey Reggio; nele não há diálogos nem narração verbal ou textual, contando “apenas” com cenas em “time-lapse” ou câmera lenta, além da música minimalista e percuciente de Philip Glass. É um registro amargo, às vezes, difícil de assistir, da cicatriz que os humanos deixam no planeta na era globalizada da segunda metade do século XX. O filme é uma facada nos ideais liberais de crescimento não sustentável da era Reagan (Ronald Reagan governou os EUA de 20 de janeiro de 1981 – 20 de janeiro de 1989).

No meio do filme há uma famosa sequência com cenas de bairros decadentes dos anos 1970, prédios em ruinas, ruas cheias de entulhos e a demolição de inúmeros edifícios. Essa sequência também contém a música mais catártica de Phillip Glass, Pruitt Igoe (Zack Snyder usou muito bem o poder dessa música no melhor momento do filme “Watchman”). É sem dúvida o clímax do filme. É chocante ainda nos dias de hoje ver tantos edifícios serem demolidos, e a história desses edifícios explana muito a política urbana americana.

Fotos: divulgação

Em 1972, depois de anos de decadência, um dos programas habitacionais mais equivocado seria demolido. Era posto ao chão o Pruitt-Igoe. Trinta e três enormes edifícios de onze andares, com quase três mil unidades habitacionais em uma área de vinte e três hectares, para ser ocupada por 10.000 habitantes.

Planejado ainda na década de 1950 e inaugurado em 60, em Saint Louis no Missouri (EUA), dentro da mentalidade funcionalista de habitação do pós-guerra e com o objetivo de suprir o enorme crescimento urbano. Os edifícios ganharam notoriedade e seu arquiteto, Minoru Yamasaki, mestre do “Novo Formalismo” americano, ganhou elogios da crítica especializada. A arquitetura racional moderna finalmente venceria as mazelas do mundo. Porém uma série de erros estratégicos, retiradas de elementos projetuais mais humanos (no projeto original haveria parques infantis, banheiros no térreo, e áreas verdes, eliminadas pelo município por questão de custo), mudanças econômicas na cidade e principalmente, a suburbização americana, fizeram o conjunto, que de início tinha ocupado 90% das unidades, na década seguinte estar praticamente abandonado.

O baque da falência do Pruitt-Igoe foi enorme, e é constantemente tido como ruína do pensamento racional modernista. O crítico americano de arquitetura Charles Jencksdiria sobre o evento: “A arquitetura moderna morreu em St. Louis, Missouri, em 15 de julho de 1972, às 15h32.” E o arquiteto Minoru Yamasaki renegou sua obra, desejando nunca o ter feito. Porém a realidade é sempre mais complexa, e culpar a arquitetura moderna é uma simplificação de problemas mais estruturais no coração dos EUA.

Não foi só o Pruitt Igoe que foi esvaziado; com a lei de habitação de 1949, focando em mudar todo modelo urbano americano (lei que estende a função do seguro hipotecário e da habitação social, que facilitou a compra e hipoteca de lotes distantes dos centros e com ajuda das novas autoestradas para incentivar a crescente indústria automotiva), as décadas seguintes nas grandes cidades viu-se uma grande fuga dos centros urbanos em direção aos subúrbios. A população negra, impedida de comprar imóveis nesses novos loteamentos (a lei contra segregação foi assinada somente na década de 1960) foi obrigada a ficar nas grandes cidades, cada vez mais vazias e com menos investimento, que culminaria na crise dos centros urbanos por toda década de 1970. O – “subúrbio branco” ficaria como sinônimo de segurança e “centro” como sinônimo de gueto das minorias e de violência. Claro que o racismo estrutural americano trocaria a causa pela consequência para se encaixar na narrativa desejada.

Um ano depois da demolição do Pruitt-Igoe, inauguraria um dos mais famosos cartões postais de Nova Iorque, maior símbolo do capitalismo, opulência, da cultura yuppie e do neoliberalismo que dominaria a década seguinte sob o comando de Ronald Reagan: as torres gêmeas do World Trade Center, símbolo também de uma Nova Iorque renovada depois de quase ir à falência, símbolo de crescimento desenfreado sem consequências. E o arquiteto era novamente Minoru Yamasaki, que faleceu antes de ver o triste fim de mais uma obra sua. Dois projetos que não poderiam ser símbolos mais opostos, tendo destinos tão parecidos.

Dedico esse texto ao meu pai que me “obrigou” a ver Koyaanisqatsi ainda criança e não só me ajudou a escolher a carreira de arquiteto, como também entender a relação entre riqueza e pobreza, arte e cinema.

Dicas

  1. Koyaanisqatsi, de 1982 de Godfrey Regio, filme que me levou a escrever esse texto, e sua continuação, Powaqqatsi, não tão bom quanto o primeiro, mas ainda vale muito assistir. E claro suas trilhas sonoras, escritas por Philip Glass
  2. The Pruitt-Igoe Myth, excelente documentário de 2011 dirigido por Chad Freidrichs, que explora todo o contexto do projeto e seu fracasso.

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