Avanços foram feitos, mas o caminho rumo à equidade ainda longo, árduo e cheio de armadilhas
Por Jéssica Stuque
O cinema brasileiro é historicamente dominado por homens brancos. Seja nas telas ou nas principais funções, são eles os principais agentes. E isso é um problema.
É um problema porque não representa a população brasileira, formada em sua maioria por pessoas pretas e pardas.
É um problema que sabemos ser estrutural e que atinge a sociedade como um todo, não sendo uma especificidade do audiovisual brasileiro.
Mas é um problema grande porque também sabemos o tamanho que as narrativas ocupam nos imaginários. As grandes produções, principalmente, têm o poder de criar padrões de comportamento que influenciam vidas e gerações.
E também um problema de ordem trabalhista. Quando pessoas negras, LBTQIA+ e mulheres não ocupam cargos proeminentes em produções, a tendência é que esses profissionais desistam da profissão e o circuito gire sempre em torno de uma mesma parcela de população.
Vamos destacar alguns dados recentes sobre diversidade no cinema brasileiro e tentar entender quais são os principais desafios de representatividade que enfrentamos ainda hoje, sob o olhar de quem está nos bastidores.
Um recorte de gênero e raça em grandes produções
Segundo pesquisas conduzidas pelo Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa) do IESP-UERJ – que há mais de 10 anos vem produzindo dados sobre o audiovisual brasileiro – foi apenas em 2020 que homens de cor preta ou parda estiveram entre os diretores de filme de grande público.
Já as mulheres brancas aparecem em maior número. Mas mesmo assim, observamos que não houve mudanças substantivas desde 1995 segundo o recorte da pesquisa.
As mulheres pretas e pardas, por sua vez, nem aparecem no mapa.
Os personagens são os que mais variam ao longo dos anos em termos de diversidade. Mas aqui também vale um ponto de atenção: a presença forte de estereótipos. Os três anos com mais inclusão de protagonistas pretos/pardos são também os que marcam os lançamentos que retratam a criminalidade, como “Cidade de Deus” (2002), “Tropa de Elite 2” (2010) e “Alemão” (2014).
Hipersexualiação das mulheres
Com relação à participação de mulheres, observamos o mesmo padrão de presença de estereótipos. Segundo uma pesquisa feita pelo Instituto Geena Davis, cerca de 73% dos brasileiros acreditam que filmes e programas televisivos mostram as mulheres de maneira exageradamente sexualizadas, e mais da metade dos brasileiros acredita que os filmes e programas incentivam o desrespeito e assédio a mulheres. No caso de mulheres negras, mesmo quando alcançam papéis de protagonismo, são frequentemente associadas à subalternidade.
O teste de Bechdel
Você provavelmente já ouviu falar do Teste de Bechdel, que analisa se um filme traz personagens femininas fortes e participativas, respondendo a três perguntas básicas:
- O filme tem duas ou mais personagens com nomes?
- Elas conversam entre si?
- O assunto da conversa é algo que não seja homem ou assuntos relacionados a romances?
As regras surgiram em 1985, quando a cartunista Alison Bechdel fez uma tirinha ironizando os filmes da indústria Hollywoodiana que em sua maioria representa as mulheres de forma estereotipada e clichê.
O teste parece simples, mas quando colocamos na ponta do lápis, a maioria dos filmes não passa no teste.
Um relato de dentro da sala de roteiro
Mariana Paiva é roteirista preta e membro da ABRA (Associação Brasileiras de Autores Roteiristas). Ela percebe os avanços no audiovisual brasileiro e comemora quando é chamada para integrar salas de roteiro que irão se propor a contar histórias de mulheres negras.
Segundo ela, o capitalismo também descobriu que a diversidade vende. Então, passou a produzir filmes e séries para um público sedento de representação. No entanto, os machismos, racismos e outros tipos de preconceito continuaram sendo reproduzidos.
Isso faz com que muitas mulheres sejam chamadas para integrar as equipes de roteiro apenas para validar se tal aspecto da história está “certo” ou “errado”, se a história não está sendo demasiadamente machista. Ou, como no caso de Mariana, se os sentimentos da mulher negra protagonista eram críveis.
“Me chamaram para participar de uma sala de uma série documental sobre uma filósofa brasileira preta. Eu fiquei super feliz porque sou fã da personagem (…) Me falaram que não queriam escrever coisas erradas e que eu como pessoa negra poderia dizer o que a personagem sentiu.”
Mariana sente o que muitas mulheres roteiristas sentem, mas nem sempre tem coragem de dizer. Ou que sentem que tem algo de errado mas nem sempre sabem o porquê.
Hoje em dia ela faz questão de dizer como se sente. “As pessoas não têm a menor preocupação em nos fazer sentir mal, então eu comecei a falar”, conta. Para ela, é extremamente importante que não apenas falemos e contratemos pessoas por critérios de diversidade, mas que que tenhamos um ambiente em que de fato o trabalho dessa pessoa pode ser desenvolvido no seu máximo potencial e de forma acolhedora.
As questões LGBTQIA+
São muitos os desafios vividos por gays, lésbicas, bissexuais, pessoas trans e todas as minorias sexuais e de gênero.
Segundo o jornalista Lufe Steffen, por muito tempo, personagens gays, lésbicas e trans foram retratados com certa chacota, como nas pornochanchadas. (Se quiser saber mais sobre o assunto, indico este artigo de Ana Flávia Toller: Vivendo a retrospectiva: Panorama Histórico do Cinema LGBT Brasileiro).
Atualmente, o cenário tem se modificado. Seja pelas transformações sociais que refletem no cinema, seja pelas campanhas de conscientização ou pelo incentivo de políticas públicas e ações afirmativas, hoje podemos ter acesso a mais filmes que abordam essas temáticas, ainda que em menor grau.
Filmes como “Hoje eu quero voltar sozinho” e “Marte Um”, que alcançaram o grande público, retratam relações homoafetivas entre jovens de forma naturalizada. É importante que todos possam se ver nas telas, ver seus gostos e comportamentos.
A presença de gays, lésbicas e pessoas trans em obras comerciais é um termômetro importante para medir o avanço das questões LGBTQI+ no cinema e na sociedade. Ela permite que a vida, os gostos pessoais e o comportamento dessas pessoas sejam naturalizados, e os indivíduos melhor aceitos por parcelas mais conservadoras da sociedade.
Assim como iniciativas surgem, a parcela mais conservadora da sociedade também faz as suas investidas. A exemplo de 2019, quando a União entrou com recurso para suspender um edital da Ancine para promoção da diversidade – ação que foi vetada pelo TRF-2.
“Os testes sumiram”
Além de serem invisibilizadas nas temáticas dos filmes, a população trans também sofre com preconceito e desemprego.
O ator e técnico de som Aren Gallo, que transicionou recentemente, conta que os testes de elenco sumiram. Antes da transição, ele já havia conseguido papéis de destaque.
“O que eu sinto é que as pessoas que estão cuidando das produções vão olhar para mim e dizer: ‘isso aí não encaixa em nada, o que eu vou fazer com essa pessoa?’”, relata.
A distorção do transfake
Outro desafio apontado pelo ator trans Gabriel Lodi é o “transfake”, o termo é usado para se referir à prática de pessoas cis representando pessas trans no audiovisual.
De acordo com ele, trata-se de um apagamento sistemático da comunidade trans, que não é representada com seus próprios corpos e histórias. A prática acaba por trazer uma falsa representatividade nas produções que podem levar a distorções.
A importância das ações afirmativas e festivais
Nos últimos anos, muitas ações afirmativas têm sido feitas para aumentar a representatividade de diferentes grupos sociais nas telas e nos bastidores – tais como editais específicos para (ou com temática relacionada a) mulheres, negros, indígenas, população LGBTQIA+.
Outro passo importante é a criação de festivais e prêmios nacionais e internacionais voltados a temáticas específicas, como o FanCineGay, ForRainbow, o Fórum Itinerante de Cinema Negro (FICINE), o FEMINA (Festival Internacional de Cinema Feminino) e o FIMCINE (Festival de Mulheres no Cinema).
Em termos substanciais, ainda é pouco. Especialmente após os desmontes protagonizados pelo governo de Jair Bolsonaro. Mas cada ação é um passo em direção a um cinema com mais equidade de gênero, de raça, de etnia e de orientação sexual.
Abaixo, recomendamos algumas séries e filmes brasileiros que abordam a temática da diversidade.
“Marte um” (2022)
Filme dirigido por Gabriel Martins, que conta a história de uma família da periferia de Contagem (MG) que busca seguir seus sonhos, passando por temas como racismo e homofobia.
Este foi o primeiro longa dirigido por um homem preto a ser indicado pela Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais para representar o Brasil na disputa pelo Oscar 2023. Apesar de não termos chegado à lista final de indicados, vale a pena celebrar. A produção só foi possível graças ao edital “Longa Afirmativo”, que direcionava recursos especiais à realização de filmes feitos por negros.
“Hoje eu Quero Voltar Sozinho” (2014)
O longa-metragem dirigido, produzido e roteirizado por Daniel Ribeiro é baseado no curta-metragem “Eu não quero voltar sozinho” (2010). O filme conta a história de Leonardo, um adolescente deficiente visual, muda com a chegada de Gabriel, um novo aluno em sua escola. O jovem vive a inocência da descoberta do amor e da homossexualidade, ao mesmo tempo em que lida com o ciúme da amiga Giovana.
“A Última Floresta” (2021)
Dirigido por Luiz Bolognesi e coroteirizado pelo xamã Davi Kopenawa, combina realidade e fantasia para retratar o cotidiano no território indígena Yanomami e denunciar o garimpo ilegal na região.
“Manhãs de Setembro” (série do Prime Video)
Na série, a cantora Liniker vive Cassandra, uma mulher trans que sonha em alugar um apartamento e viver a sua liberdade, quando sua vida toma um rumo inesperado. Dirigida por Luis Pinheiro e Dainara Toffoli, também conta com a participação do músico e ator Paulo Miklos e da cantora Linn da Quebrada.