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Uma pediatra que não gosta de crianças vai roubar o seu coração

Andrea Del Fuego traz uma anti-heroína marcante em um romance curto excelente para abrir as leituras deste novo ano

Aline Viana

No serviço de streaming de músicas que assino, eles criam uma playlist com as músicas que eu posso ter “deixado passar” ao longo do ano. Geralmente, tem uma ou outra coisa legal, mas a maioria eu fiz bem em ignorar. Para essa coluna, fui atrás de “A Pediatra”, de Andrea Del Fuego (editora Companhia das Letras), que estava na minha pilha de leituras para o ano que findou e que merecia ser apreciado antes que o novo ano começasse a trazer suas novidades.

Não tenho muita experiência com profissionais da saúde, mas convivo com muitos profissionais da educação. E, umas das coisas que aprendi dessa vivência, é que há uma porcentagem bastante significativa de docentes que simplesmente odeia alunos enquanto outros sofrem de uma severa alergia. É gente que foi parar no magistério porque é uma carreira inclusiva em que basta ter um diploma, alguma persistência e autocontrole e voilá, você ganha um contracheque ao final do mês.

Fiz esse interlúdio porque a protagonista de Andrea Del Fuego nesse romance é justamente um desses tipos. Filha de médico, seguiu carreira na área praticamente por osmose. Ela tem apreço zero por outros seres humanos e sente um desgosto particular em relação à crianças doentes

Para Cecília, a medicina não é dom, é apenas uma carreira. Ainda que uma carreira com um status bem diferenciado e, portanto, digna dela. Para merecer a deferência social que o título de “doutora” impõe, basta concentrar-se em fazer o arroz com feijão bem feito, sem se dignar a interessar-se por novas práticas ou eventuais modismos. 

Foto: Divulgação

A consulta que ela aplica dura o tempo regulamentar, não há possibilidade de nenhum afago extra seja pra mãe ou para os pequenos pacientes. Diante de qualquer risco de complicação, ela encaminha logo para um especialista – o que garante o apreço dos colegas pelas indicações e evita qualquer dor de cabeça para si. Quem nunca teve um médico ou um colega assim?

Cecília é uma pediatra que também atua como neonatologista, aquele profissional que atende o bebê nos seus primeiros momentos de vida. E era justamente da parceria com uma médica obstetra que entrava uma renda fácil e garantida, porém, agora severamente diminuída graças a chegada de um pediatra defensor do parto humanizado e de técnicas de medicina alternativa para lidar com os recém-nascidos. 

Detesto crianças e não sou eu quem as trata, mas a medicina que estudei. Posso não me enternecer com um bebê, mas tratá-lo com mais eficiência que um Jaime ninando o neonato numa rede de crochê dentro da incubadora e evitando esteroides para não contradizer a natureza.”

Nos afetos, a pediatra é do tipo que acredita estar na vida para receber em vez de doar. Ela assiste com alívio ao esfacelamento do seu casamento com um ex-marido depressivo e dependente. Não há perda alguma pois ela até já tinha escalado um executivo para ser seu amante.

Celso, o tal executivo, é pouco delineado pela autora e parece seguir o roteiro de amante padrão: tem esposa morando no Sul, enquanto Cecília reside em São Paulo. Depois muda a família para a capital paulista quando seus negócios se expandem na cidade, ao mesmo tempo em que poderá desfrutar de forma mais prática da casa da amásia. 

O caldo entorna quando a doutora sem sentimentos descobre o amor materno justamente pelo filho do amante, Bruninho. A criança que parece perfeita à primeira vista, a encanta e a leva numa escalada vertiginosa a repensar seus valores.

E por que você leitor ou leitora deveria dar uma chance a saga dessa personagem sem empatia alguma? Boa parte da história assistimos do ponto de vista de Cecília, direto da mente sem filtros da personagem. Ela é cínica, divertida, egoísta e sem limites. 

A voz da protagonista é algo e tanto para um livro que a autora afirma ter escrito em apenas um mês, enquanto deu um tempo na escrita de outra obra de maior fôlego, que ainda aguardamos que chegue ao mercado nacional. Aposto o meu exemplar eletrônico que você não irá resistir ao se deparar com os primeiros parágrafos.

Não faço aqui nenhuma apologia à canalhice que tanto se vê nesse País nos últimos dias, longe disso. Porém, a arte, é importante que sempre se lembre, não é lugar para criar infinitos contos morais.  

As discussões todas que a obra levanta sobre a relação entre pais e filhos, sobre a humanidade dos médicos, sobre os relacionamentos líquidos e voláteis e sobre a crescente mercantilização até do momento em que nascemos estão lá sem precisar que o He-man apareça ao final do livro lembrando os momentos que nós, amiguinhos, deveríamos ter pego as pistas e por fim desenhe a moral da história.

Serviço:

A pediatra

Andrea Del Fuego

Editora Companhia das Letras

Exemplar impresso: R$ 59,90 / e-book e audiobook: R$ 29,90

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