Por Laisa Lima.
Nem Stephen King nem Bram Stoker; o verdadeiro mestre do terror literário chama-se Edgar Allan Poe. Proprietário de uma mente conturbada e uma criatividade para além do habitual, o escritor nos agraciou com suas obras desde 1827, perturbando muitos e deixando poucos leitores dormirem em paz. E, se existe uma fonte que o cinema transforma em cardápio, esta vem das palavras escritas. Livros, textos, contos etc., formam um conjunto de opções que as câmeras amam ter; disso não podemos reclamar de Poe. “O Corvo” (1994), “Dois Olhos Satânicos” (1990) e “Histórias Extraordinárias” (1968), que conseguiu a proeza de unir Federico Fellini, Louis Malle e Roger Vadim, tornaram-se exemplos da versão cinematográfica do mundo interiorano do poeta. Resgatando a origem destes bons espécimes do horror, a Netflix apostou no artista para seu novo suspense, “O Pálido Olho Azul”, de Scott Cooper.
Será que revirar o caixão de Edgar Allan Poe foi válido?
Seguindo a tradição das histórias do autor, somos apresentados a um mistério: vários assassinatos sem explicação ocorrem na Academia Militar de West Point, iniciando a sequência com um jovem enforcado. Entretanto, o que mais instiga é o fato de seu coração ter sido arrancado por alguém no necrotério. Caso destinado a polícia, não é? Dito isso, Augustus Landor (Christian Bale), um detetive aposentado e solitário, é contratado para investigar a procedência e o culpado pelo crime, ao mesmo tempo que conhece ninguém mais ninguém menos que Edgar Allan Poe, interpretado por Harry Melling e, na narrativa, um cadete aspirante a poeta. Poe, então, passa a colaborar com o investigador transmitindo suas percepções e auxiliando-o na hora de decifrar certas pistas que apenas um indivíduo integrante daquele ambiente é capaz de apurar.
Não, E. A. Poe não foi presunçoso o suficiente para se colocar no próprio texto. A partir dos pensamentos de Louis Bayard que “O Pálido Olho Azul”, em um livro homônimo, veio à tona. Porém, se o medo de representar uma figura imperecível atrapalhasse o andamento do forro criativo, talvez o melhor detalhe do longa-metragem não estivesse entre nós. A atuação de Melly na pele do escritor em momentos nos quais a juventude e a intensidade reinavam sobre ele, decresce o mérito dos coadjuvantes a ponto de nem lembrarmos com clareza o nome deles. Em seus ávidos discursos e perambulações de um lado para o outro dos cômodos em que se encontrava com Landor, o jovem capta a atenção do espectador como ninguém; o desejo, logo, é que ele declame mais as falas que se assemelham a poemas ditados. Enquanto isso, o protagonista Christian Bale assiste de longe, em uma performance convincente mas preguiçosa, seu parceiro estar sob o cargo de condutor da afetividade oriunda do público.
Flutuando nas margens do drama, suspense e thriller psicológico, o filme não evidencia um só estilo; por melhor que seja a intenção de navegar entres diferentes gostos possíveis da audiência, é necessário uma certa estabilidade no tom para que adentremos na atmosfera do que acontece na tela. Caso contrário, o clima requerido cai por terra. Devido a esta característica, “O Pálido Olho Azul”, em suas 2 horas e 10 minutos, cambaleia por categorias fílmicas sem definição nenhuma, sendo inconsistente na passagem do enigma central, elaborando também uma conjunção de acontecimentos que ora se arrastam, ora correm demais. E, além de tais eventos reforçarem a quase inexistência de firmeza, a conveniência em que os insights “mágicos”, a colaboração dos suspeitos e as descobertas óbvias ocorrem, retiram parte da credibilidade ali indispensável.
Embora haja uma apreensão inicial e uma boa apresentação de seus personagens, descrevendo-os com palavras (poucas) suficientes a fim de não perder tempo omitindo os mistérios que estariam por vir, a obra tropeça na comodidade de se fazer esperar pela resolução. Contudo, se ligarmos os pontos, a reviravolta parece clara o bastante para duvidarmos da complexidade do que foi observado. E, em filmes suplementados por achados, perdidos e pelas descobertas, nada anula a ênfase na perspicácia do espectador. Em “O Pálido Olho Azul” a inteligência fica encoberta pela quantidade de novas informações que não cumprem a função de instigar, mas sim de alcançar cada vez mais uma conclusão que deveria implantar a sementinha da dúvida, não da irrefutabilidade.
Scott Cooper, ainda que guie o longa-metragem com mãos inconstantes, apresenta um universo gótico digno do grande cinema de horror, utilizando sua filmagem junto ao diretor de fotografia, Masanobu Takayanagi, para carregar as taciturnas ocorrências que rondam a Academia Militar de West Point. A neve sempre abundante, a escolha sóbria das cores nas suntuosas vestimentas do século IX, o apagamento de qualquer fagulha de vivacidade, as construções rústicas que parecem ranger em nossos ouvidos, entre outras especificidades, foram importantes vislumbres de sensatez dentro do desenvolvimento do sentimento agonizante que necessita brotar de um dito suspense. A produção da imensa Netflix pode ter dado um empurrãozinho nesse lado. No que se diz respeito ao roteiro, apesar de bons diálogos terem partido de Landor e especialmente de Poe, este não escapa dos caminhos já visados, onde o menos inventivo é o mais, em teoria, exato.
“O Pálido Olho Azul” não conversa totalmente com o drama, com o thriller psicológico e muito menos com um terror. O que se vê são resquícios de todos estes unidos a um Edgar Allan Poe, construído por Harry Melling, que apresenta uma persona competente em ser interessante, coadjuvantes de nome relevante e participações que beiram a chatice, tais quais Toby Jones, Robert Duvall e Charlotte Gainsbourg, e a tentativa de realizar uma fábula do horror requintada com um “quê” sobrenatural. O alcançado talvez não siga nesta direção; as vias para este objetivo pecam em originalidade, caindo em respostas rasas e clichês que não empolgam, nem mesmo no plot twist – já estimado, aliás. Considerando tudo isso, há também uma eficiência estilística na obra: os cenários e as imagens deslumbrantes fazem da experiência (pelo menos a sensorial) não ser de todo ruim. Pelo menos, E .A. Poe pôde ter a experiência de ser a estrela de um conto a la ele mesmo; certamente, o escritor fez aprendizes.