Em sua coluna de estreia, a juíza Rafaela Glioche defende a responsabilidade da Justiça em contribuir para a formação de uma sociedade mais consciente e adimplente e de que o credor merece ter seus direitos cuidados em proporção correspondente à atenção dispensada pelo legislador aos devedores
Rafaela Glioche
As relações jurídicas obrigacionais são parte do dia a dia da pessoa humana.
Diuturnamente obrigamo-nos a pagar por bens e serviços, seja imediatamente, seja a prazo.
Não raras vezes, porém, e pelas mais diversas razões, os indivíduos não cumprem o acordado e o Poder Judiciário é acionado para intervir, adotando posturas tendentes a compelir o devedor a adimplir o que se obrigou.
Essas obrigações podem estar previstas, instrumentalizadas, em contratos, por exemplo, cheques, notas promissórias, que são espécies do que chamamos de títulos executivos extrajudiciais ou, então, em sentenças e acórdãos, que são títulos executivos judiciais. Uma vez descumprida a obrigação o credor pode dar início a uma fase do processo denominada cumprimento de sentença, de função autoexplicativa, ou a um processo de execução (no caso de cheques, contratos, por exemplo).
É por meio destes instrumentos que serão adotadas medidas que têm por finalidade satisfazer a obrigação outrora assumida. A mais comum dessas medidas, porque mais eficaz, é a penhora online, por meio da qual o Juiz bloqueia ativos (v.g., dinheiro) em nome do devedor e o entrega ao credor, dando fim ao débito.
Evidentemente não é todo e qualquer dinheiro do devedor que pode ser objeto de constrição. E esse é o ponto de início da discussão que se propõe.
Historicamente o salário – neste ponto se pede vênia para utilizar sinônimos dele sem precisão técnica com o fito de evitar repetição – é impenhorável. Isso porque, em brevíssimas e resumidas linhas, ele tem por finalidade promover a subsistência do indivíduo. Assim, o devedor responde pelas obrigações assumidas, mas existe um limite intransponível: sua dignidade, aqui entendida como patrimônio mínimo.
Ocorre que, como sabemos, substituímos nossos salários por outros bens e serviços, esses mesmos que nos obrigamos a pagar. Compramos televisões, carros, eletrodomésticos, moramos de aluguel. O que tem vez quando deixamos de usar nossos salários para pagar por esses bens e serviços? Justamente a fase executiva ou o processo de execução.
O credor busca o Poder Judiciário para receber o que lhe é devido. Este, por sua vez, permite ao devedor pagar voluntariamente o débito. Caso isso não ocorra é possível a penhora de dinheiro que, aliás, é o que dispõe o art. 835, inciso I, do Código de Processo Civil, que exalta o dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira como preferencial ativo a ser usado no cumprimento de obrigações.
Sucede-se que tal penhora ordinariamente recai sobre os proventos do devedor que, por sua vez, invoca a impenhorabilidade deles, com arrimo no art. 833, inciso IV, do Código de Processo Civil. Assim, em regra, somente valores diversos dos que se consubstanciam no salário podem ser constritos (aplicações financeiras superiores a quarenta salários-mínimos, por exemplo).
Possuindo o devedor, pois, apenas seu salário está “isento” do pagamento de suas obrigações?
Essa celeuma não é nova no Direito brasileiro.
O sistema jurídico possui necessários mecanismos protetivos do devedor, conforme já se tangenciou em breves linhas acima. Mas tais mecanismos devem ser corretamente interpretados, sob pena de inviabilizar a satisfação da obrigação e toda a sistemática que envolve as atividades econômicas. Havendo, portanto, esse aparente conflito é dever do(a) Magistrado(a) analisar a situação real para que não haja abusos de direito ou prejuízos irreparáveis para qualquer das partes.
Ensina Elpídio Donizete[1] que “é preciso distinguir entre o devedor infeliz e de boa-fé, que vai ao desastre patrimonial em razão de involuntárias circunstâncias da via, e o caloteiro chicanista, que se vale das formas do processo executivo e da benevolência dos juízes como instrumento a serviço de suas falcatruas. Quando não houver meios mais amenos para o executado, capazes de conduzir à satisfação do credor, que se apliquem os mais severos”.
É evidente que tem ele – salário – o caráter de satisfazer as necessidades básicas do indivíduo, assim como honrar as obrigações assumidas perante terceiros na medida da capacidade de seus ganhos.
Portanto, há que se reconhecer que, se os vencimentos se prestam à satisfação das obrigações assumidas pelo indivíduo, na hipótese de este descumpri-las sem justa causa, não demonstrando que a totalidade dos valores percebidos a título de salário está comprometida com suas necessidades básicas, nada obsta que parte dele seja contrista para a quitação da obrigação não paga.
O Tribunal de Justiça de São Paulo tem reconhecido essa possibilidade, especialmente quando há rendimento por parte do devedor que permita o pagamento “parcelado” do crédito com desconto coercitivo do salário, e em cotejo com a dignidade do credor, a exemplo do que se decidiu no TJSP. Agravo de Instrumento nº 2172385-56.2019.8.26.0000.
Na oportunidade do julgamento de tal recurso consignou-se que há casos em que o valor recebido pode superar o necessário para subsistência. Permitir que um devedor mantenha pleno conforto às expensas de seus credores é incompatível com a defesa de seu direito à dignidade como pessoa humana. O instituto da impenhorabilidade tem como escopo garantir a dignidade do devedor, mas não pode servir de escudo para a manutenção de privilégios e comodidades às custas da derrocada de seus credores.
Nesta toada, embora não se olvide a impenhorabilidade inicial do salário, tendo em vista sua finalidade precípua de prover a subsistência do indivíduo, não pode essa garantia se transformar em verdadeira “carta branca” para a inadimplência e cabe ao Poder Judiciário a análise concreta das situações trazidas a ele para verificar se o devedor não está abusando desta proteção para violar a dignidade e o direito do credor.
Como bem resumiu em seu brilhante voto o Excelentíssimo Desembargador L. G. Costa Wagner, da 34ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, no Agravo de Instrumento nº 2061020-94.2019.8.26.0000, ao tratar de medidas atípicas, mas com ratio decidendi que pode ser aqui aplicada:
Por detrás de discussões como a aqui travada está a credibilidade do Poder Judiciário e a mensagem de qual tipo de sociedade queremos deixar para o futuro: Comodismo, inadimplência, irresponsabilidade, prestígio aos devedores contumazes, ou seriedade, honradez e culto ao cumprimento de obrigações.
[1] DONIZETTI, Elpídio, Curso Didático de Direito Processual Civil, 16°Edição, São Paulo: Atlas, 2012.