Bem-vindo à selva
do mundo digital

O tecnofeudalismo e a influência do digital na sociedade

A lei da selva é clara: sobrevive o mais forte, como o leão, ou o mais esperto, como a hiena

No capitalismo selvagem, essa máxima também impera. A exploração da força de trabalho iniciada no período da Revolução Industrial, lá no século XVIII, deu início a esse conceito onde o mais forte se impõe sobre o mais fraco, que segue as regras impostas para sobreviver. 

Antes disso, porém, as estruturas de poder já deixavam claro que dominava a selva, e quem era a presa. Desde o feudalismo, que começou no século V, mandava que podia, obedecia quem tinha juízo. 

As estruturas de poder que organizam, segregam e movem o mundo pouco mudaram em todos esses séculos. Sai o arado, entram as máquinas. 

Em pleno século XXI, porém, parece que algo mudou. O avanço tecnológico nos deu uma vida mais confortável, expandiu o conhecimento, eliminou barreiras geográficas, e permitiu um senso de liberdade jamais experimentado antes.

Ainda assim, metade dos dispositivos que usamos para nos conectar tem um dono: Mark Zuckerberg. Usamos basicamente uma plataforma para responder todas as perguntas que temos: o Google. E recorremos a um só lugar quando precisamos fazer qualquer tipo de compra: a Amazon. 

Temos o poder de escolha, mas não temos realmente opção. É nesse cenário que parece despontar um novo sistema, que pode ser ainda mais bárbaro.

O nome já impressiona, pois une o novo, o futuro, com um conceito que há muito tempo ficou no passado: Tecnofeudalismo

O feudalismo é caracterizado por uma pirâmide onde os donos de terras – ou senhores feudais – controlavam o resto da sociedade, enquanto os trabalhos do campo – ou servos – proviam a força de trabalho, com quase nenhuma recompensa. 

Como esse sistema se reestruturou e voltou ao centro da sociedade nos dias de hoje? Segundo o economista e pensador francês Cédric Durand, autor do livro “Tecnofeudalismo: crítica da economia digital” e um dos proponentes da tese do tecnofeudalismo, as novas tecnologias, na forma de seus criadores, geraram grande monopólios, deixando a população refém das grandes empresas de tecnologia, ou “Big Techs”, e causando uma disparidade na concentração de renda. 

PREDADORES

Por definição, as Big Techs são as grandes corporações de tecnologia que dominam o mercado. Apesar dos principais nomes estarem no Vale do Silício, nos EUA, figuram também algumas empresas chinesas, como Tencent e Baidu.

As que mais se destacam no cenário atual, porém, ganharam a sigla em inglês FAANGS que, curiosamente, se traduz para presa. As seis predadoras, com seus dentes afiados, dominam o mercado da comunicação e lideram os alertas que os especialistas apontam como características para o tecnofeudalismo.

PREDADORES

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Modo de ataque

O tecnofeudalismo é uma teoria, e como tal, não é unânime. Há quem debata que é apenas uma forma de capitalismo, que segue se adaptando a novos formatos. E não é a adaptação que, segundo Darwin, garante a sobrevivência dos indivíduos?
Na selva, os predadores seguem a cartilha: observar, criar a emboscada, e atacar. No tecnofeudalismo, o caminho é parecido.

A ação dos predadores

Observação

 Sistemas de vigilância e coleta de dados , sem controle ou regulação sobre seu uso

Emboscada

Usuários recebem conteúdos altamente customizados e acabam manipulados

Ataque

Liberdade mascarada, manipulação social e econômica

Observação

1984 chegou e passou, e não vimos uma realidade similar a retratada por George Orwell, mas estamos nessa direção. Nossas casas contam com dispositivos que ouvem o que falamos e veem o que fazemos. Nossos computadores sabem os produtos que procuramos e nossos celulares escutam nossas conversas. 

Mais do que isso, dados e informações utilizadas na internet são apropriados, com a justificativa de criar experiências personalizadas para os usuários, e pronto, com um clique, aceitamos o uso de nossas informações ao preencher um formulário, nos inscrever em um portal, ou fazer uma compra. 

O uso indiscriminado dessas informações tem potencial para alterar as estruturas de poder, moldar as decisões dos indivíduos e influenciar a economia e a política. Em 2018, o Facebook foi acusado de vazar os dados de 87 milhões de pessoas para a consultoria política Cambridge Analytica, que usou essas informações em favor da campanha do então candidato à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump, dois anos antes. 

Com isso, destaca-se a vertente do “Capitalismo de Vigilância”, popularizada pela psicóloga social e ex-professora da Universidade de Harvard, Shoshana Zuboff. Segundo ela, é uma nova forma de acumulação material, utilizando a “realidade” como produto de compra e venda. Para Zuboff, foi o Google que começou a aplicar esse conceito, seguido pelo Facebook. 

“O ‘jogo’ é vender acesso ao fluxo de sua vida diária, sua realidade, em tempo real para influenciar e modificar diretamente seu comportamento com fins lucrativos. Esta é a porta de entrada para um novo universo de oportunidades de rentabilização: os restaurantes que querem ser o seu destino. Fornecedores de serviços que desejam consertar suas pastilhas de freio. Lojas que o atrairão a fábula das sereias” –  Shoshana Zuboff

Emboscada

Por que, então, caímos nessa fábula e consumimos exatamente o que nos é oferecido? Como presas, dificilmente notamos quando os predadores estão nos observando e, se notamos, pode ser tarde demais. 

O conceito não é novo, e somos influenciados pela propaganda o tempo todo. A diferença é que as gigantes da tecnologia têm tantas informações sobre nós, que podem descobrir, e explorar, nossas maiores fragilidades. 

Mais do que convencer os indivíduos a comprar um produto ou visitar uma loja, esse acúmulo de informação permite influenciar opiniões. Redes sociais como o Facebook e o Twitter se transformam em plataformas de propagação de teorias conspiratórias e as já tão comentadas Fake News. 

De acordo com a teoria de Durand, o que faz do momento atual um novo feudalismo, ou “tecnofeudalismo”, é a relação de dependência criada com essas plataformas digitais. Para ele, isso gera uma relação predatória, justamente por seguir oferecendo recursos que se tornam indispensáveis, tornando impossível quebrar esse ciclo. 

“Quanto mais serviços indispensáveis oferecem, mais se acentua a dependência. Esta situação é muito importante porque mata a ideia de competição. Esta dominação prende os indivíduos a este transplante digital. Tal tipo de relação de dependência tem uma consequência: a estratégia das plataformas que controlam esses territórios digitais é uma estratégia de desenvolvimento econômico por meio da predação, por meio da conquista” – Cédric Durand

Ataque

O resultado final é uma população rendida, econômica e socialmente. De fora, parece livre para consumir o que quiser, mas é altamente influenciada pelo que essas empresas querem oferecer – seja um produto ou uma opção política. 

A relação do Facebook com a campanha de Trump é só um exemplo de como a falta de controle sobre essas empresas leva a resultados, bem, descontrolados. 

Elon Musk assumiu o Twitter no final de 2022 prometendo, entre outras coisas, liberdade de expressão. Mas, na prática, o efeito parece perturbador: em apenas um mês sob seu comando, discursos de ódio com conteúdo racista, homofóbico e antissemita cresceram na plataforma, segundo uma pesquisa divulgada pelo New York Times. 

Desde que assumiu a companhia, Musk já demitiu mais da metade dos funcionários, incluindo a maior parte da equipe brasileira da companhia. 

Para onde vamos?

A verdade é que existem muitas teorias sobre qual o futuro da humanidade em relação a tecnologia, e as consequências sociais disso. Esses avanços fazem parte do imaginário coletivo há anos, como carros voadores, robôs com aspecto humano, casas em Marte.

As grandes corporações da tecnologia parecem buscar esse caminho. IBM, Microsoft e Amazon têm perseguido a exploração de outros planetas, enquanto o Google se uniu à SpaceX de Musk.

O magnata também está por trás da Neuralink, uma empresa que trabalha em soluções ICC (interface cérebro-computador). Com capacidade para promover um grande avanço na medicina, por exemplo, essas soluções também geram debates éticos sobre seus ainda desconhecidos efeitos físicos e psicológicos.

Assim como a teoria do tecnofeudalismo gera questionamentos, essas soluções tecnológicas também, principalmente seu uso indiscriminado, pouco regulado e com consequências intangíveis.

A Inteligência Artificial evoluída ainda pode ser uma das responsáveis por altas taxas de desemprego. Não acredita? O próprio ChatGPT alerta. Quando perguntado sobre o futuro da IA, ele destaca muitas possibilidades: diagnóstico médico, reconhecimento de voz, tradução automática, tomada de decisões, interação intuitiva e personalizada com dispositivos móveis. Mesmo assim, ele deixa o alerta: “Também existem preocupações sobre o futuro da IA, como a possibilidade de desigualdades e injustiças em sua aplicação, o risco de perda de empregos para trabalhadores humanos e a potencial ameaça de sistemas de IA descontrolados ou mal-intencionados. Por isso, é importante desenvolver a IA de maneira responsável e cuidadosa, com atenção às implicações sociais e éticas de seu uso”.

CRÉDITOS

Elon Musk: Reprodução/The Royal Society

Blade Runner: Reprodução

Jetsons: Reprodução

Vigilância: Reprodução

Zuckerberg: Reprodução/Meta

ChatGPT: Reprodução/chatGPT